A importância da luta pelos direitos reprodutivos das mulheres e pela legalização do aborto

A autonomia em relação ao próprio corpo é um dos direitos que mais têm sido batalhados pelas mulheres ao longo dos anos na luta contra o preconceito, o machismo e a desigualdade de gênero. E dentro dessa discussão não há como deixar de fora duas questões essenciais: a legalização do aborto e a ampliação dos direitos reprodutivos e sexuais.

Atualmente, o Código Penal, no artigo 128, prevê que o aborto é considerado legal nos casos em que a gravidez representar risco de morte à gestante, quando a gravidez é resultado de um estupro ou quando o feto for anencefálico. Mas até mesmo nessas condições, o aborto pode ser considerado um risco, como foi o caso de protestos e retaliações realizadas por pessoas na frente de um hospital no Espírito Santo no ano passado. A vítima em questão era uma menina de 10 anos estuprada por um tio. O debate pela legalização do aborto é extenso, enfrenta diversas resistências e vai muito além da sexualidade, passando pela saúde, pela segurança e pelo direito à vida da própria mulher.

“Quando pensamos na legalização do aborto, objetivamos oferecer condições para que as mulheres não se exponham a riscos e não morram em razão da clandestinidade dos procedimentos. O cerne desta discussão é o direito da mulher à escolha sobre seu próprio corpo, e isso envolve inclusive as condições materiais para que ela possa desempenhar a maternidade caso seja essa sua escolha”, afirma Nayara André Damião, assistente social que atua no CRAS Oeste B.

Nayara André Damião, assistente social e doutoranda pela Universidade Estadual de Londrina (UEL)

Nayara já vem pesquisando o assunto há tempos. Ela possui mestrado pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), com a dissertação “Se podes olhar, vê: o aborto no cotidiano das assistentes sociais” e atualmente é doutoranda na mesma instituição.

O CRESS-PR inicia hoje uma série de matérias relacionadas aos direitos das mulheres em alusão ao Dia Internacional da Mulher. Nessa primeira reportagem confira uma entrevista de Nayara Damião, que fala sobre as dificuldades, desafios e a importância da luta pelos direitos reprodutivos das mulheres e da legalização do aborto, além da importância do trabalho de assistentes sociais no auxílio a mulheres em situação de desproteção e que tem os seus direitos violados frequentemente.

  1. Quais as principais dificuldades para que haja avanços na discussão sobre legalização do aborto no Brasil? Nos últimos anos esse debate acabou sofrendo alguns revezes?

O debate sobre aborto no Brasil ainda é muito permeado pelo discurso conservador, que utiliza os argumentos morais e religiosos para impedir que a questão seja tratada de forma adequada levando em consideração o que a realidade materializa e a ciência desvela. A origem de dificuldade nos avanços está no fato de ser o aborto ligado à autonomia da mulher ao próprio corpo, ponto chave na apropriação das mulheres pelo patriarcado-racismo-capitalismo.

Em relação à religião, é importante ressaltar: não significa que as pessoas não possam fazer escolhas pessoais segundo a própria fé. Significa, na verdade, que o Estado deve atuar para que todas as pessoas possam tomar suas decisões independente daquilo que uma religião considera certo ou errado. Há um livro chamado “o que é aborto”, de Danda Prado, que mostra como várias religiões encaram o debate sobre aborto, e é incrível como é diverso! Mesmo na religião, não há consenso. Por isso, precisamos legislar e ofertar serviços tendo como base a realidade e a ciência, e cada um, com sua consciência, poderá tomar suas próprias decisões.

Algumas pesquisas, como a de Maria Isabel Baltar da Rocha e Maria Betania Ávila apontam uma intensificação da reação dos setores conservadores diante dos avanços nos direitos das mulheres ocorridos a partir da redemocratização até o início dos anos 2000. Dentre essas conquistas, estão as normas técnicas de atendimento ao aborto legal, o espraiamento dos serviços de abortamento legal, etc. Essa reação tem se fortalecido nas últimas décadas com a articulação de diversos grupos objetivando retroceder os direitos conquistados e, para além disso, minar o debate com base na ciência e na realidade.  

Penso que um dos desafios é a desinformação. Muitas pessoas desconhecem o profundo debate que fazemos em torno da temática e se iludem com informações falsas acerca do aborto. Talvez, se tivessem o entendimento sobre o debate realizado entre as feministas, pesquisadoras e no interior de diversas categorias profissionais (como por exemplo a nossa, que constituiu um sólido posicionamento sobre o tema), pensassem de forma diferente.

  • Por que esse é um tema importante a ser discutido? O que o aborto com todas as condições de saúde e segurança representa para os direitos das mulheres?

A discussão sobre a legalização do aborto está atrelada à autonomia da mulher sobre o próprio corpo, além de ser um ponto importantíssimo no que se refere à saúde pública. É importante frisar que a proibição do aborto não logrou fazer com que a prática deixe de ser realizada. O que a proibição do aborto fez é empurrar as mulheres para a clandestinidade: quem tem dinheiro paga por clínicas minimamente seguras e discretas, longe do julgamento moral e do questionamento sobre seus motivos. Quem não tem dinheiro, se arrisca com os métodos mais cruéis, sendo apontadas pela sociedade e se expondo ao perigo de sequelas graves, da prisão e da morte. Quando pensamos na legalização do aborto, objetivamos oferecer condições para que as mulheres não se exponham a riscos e não morram em razão da clandestinidade dos procedimentos. O cerne desta discussão é o direito da mulher à escolha sobre seu próprio corpo, e isso envolve inclusive as condições materiais para que ela possa desempenhar a maternidade caso seja essa sua escolha. Angela Davis nos alerta sobre isso: há mulheres que, pelas suas condições de classe e “raça”, são impedidas de exercer a maternidade.

Por isso, vários aspectos estão envolvidos: desde a educação sexual, para que se possa identificar abusos e ter acesso a conhecimentos sobre prevenção de gravidez e saúde sexual e reprodutiva; distribuição gratuita de métodos contraceptivos compatíveis com a saúde e o desejo das mulheres; aborto seguro e gratuito para aquelas que decidirem abortar; relacionamentos livres de violência; condições para o exercício da maternidade: políticas de trabalho e renda, divisão macro (com o Estado) e micro (dentro da família) dos cuidados com crianças e adolescentes, creches, transporte público gratuito e de qualidade, moradia digna e uma série de outras questões. A legalização do aborto é um dos passos no longo caminho para a concretização da autonomia da mulher sobre o próprio corpo. Um passo extremamente urgente e necessário, pois estamos falando de evitar uma das maiores causas de morte materna, que é a clandestinidade do aborto.

  • Também há dificuldades em promover essa conscientização por parte das mulheres em relação aos direitos reprodutivos e uso de métodos anticoncepcionais? Quais são essas barreiras?

Vivemos em uma sociedade estruturada pelo patriarcado e, por conta disso, muitas questões atravessam a autonomia das mulheres em relação aos direitos reprodutivos. Carole Pateman tem um livro excelente chamado “o contrato sexual”. Nele, a autora discute sobre como os homens, durante os séculos, tem tratado as mulheres como propriedade, inclusive para usufruto sexual. Isso foi materializado para mim na minha pesquisa de mestrado. Nela, entrevistei várias assistentes sociais atuantes em diversos serviços das políticas sociais e percebemos o quanto ainda é presente que os homens controlem ou proíbam o uso de anticoncepcional, forcem relações sexuais desprotegidas e exijam práticas sexuais conforme seus ditames, ignorando o desejo da parceira. O abuso e estupro dentro das relações maritais é gritante, assim como o controle reprodutivo por parte dos homens.

Ao mesmo tempo, vemos um cenário alarmante de abandono paterno, contradição da sociedade patriarcal que vivemos. O patriarcado coloca as mulheres numa relação coletiva de apropriação: tanto do seu trabalho não remunerado de cuidados domésticos e familiares, quanto do seu corpo enquanto objeto sexual, e da sua capacidade reprodutiva para garantir a geração de novos seres. As relações construídas nesse sistema são desiguais, hierárquicas, de dominação e exploração. No bojo dessas relações, qual a condição das mulheres para a tomada de decisão em relação ao próprio corpo, a sua sexualidade e reprodução?  Esse contexto não é fixo e imutável e, por isso, é nosso dever travar esse debate e buscar as condições necessárias para que mudanças significativas aconteçam.

  • Qual o papel das (dos) assistentes sociais na luta pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres? E de que maneira elas atuam em relação a isso no dia a dia?

Faz parte do nosso trabalho tirar o véu que invisibiliza o tema da sexualidade e da reprodução e estimular o debate com homens e mulheres, inclusive sobre o aborto. Nosso dever é proporcionar que esse debate seja feito com informação de qualidade. É nosso papel, enquanto assistentes sociais, denunciar e apontar a violação de direitos sexuais e reprodutivos.

Na minha pesquisa ficou claro que a maioria das assistentes sociais lida ou lidou com alguma situação relacionada aos direitos reprodutivos e suas violações: gravidez indesejada, gravidez na adolescência, aborto clandestino, abandono paterno, violência e abuso sexual, aborto decorrente de violência doméstica, imposição de laqueadura (por parte do poder judiciário ou de equipes de saúde) para mulheres pobres, falta de acesso a informações sobre métodos contraceptivos, sexualidade e reprodução, recusa de atendimento em serviços de abortamento legal, etc.  Claro que, por trabalharmos em serviços que nos requisitam de forma diferente para atuar em locais diversos, essas demandas chegarão de formas distintas e as respostas possíveis para cada profissional serão diferentes. Não significa que a temática sobre direitos reprodutivos e aborto seja temática exclusiva de um serviço ou apenas para tratar com mulheres. Cada assistente social poderá verificar o momento e a maneira de atuar nesse sentido.

Na minha pesquisa de mestrado, as assistentes sociais entrevistadas lidaram de diversas formas com o tema: há aquelas que trouxeram a discussão sobre os direitos reprodutivos e as relações livres de violência em grupos com mulheres nos CRAS; mobilização da rede de serviços frente às violações dos direitos reprodutivos; embate das assistentes sociais para que os serviços de abortamento legal atuem conforme as Normas Técnicas vigentes, sem julgamento das mulheres ou exigência de Boletim de Ocorrência, por exemplo.

Enquanto assistente social atuante na proteção social básica da política de assistência social, tive contato com as demandas relativas aos direitos reprodutivos de diferentes formas, como no atendimento junto às mulheres do território e no trato com serviços que compõem a rede de atendimento daquela região. A pesquisa me ajudou a qualificar minhas respostas profissionais diante disso. Só o empirismo do cotidiano não é suficiente, para isso o estudo e a pesquisa foram essenciais. As assistentes sociais que entrevistei apontaram que a acolhida e a escuta qualificada são pontos chave diante desse tema, independente do serviço no qual atuam. Para isso, são necessárias informações de qualidade. É necessário ter formação e debate. Esse é o papel da pesquisa: refletir o mais próximo possível a realidade para que possamos atuar de forma mais adequada e eficiente diante das expressões da questão social.

Confira algumas das referências utilizadas por Nayara:

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

ROCHA, Maria Isabel Baltar. A discussão política sobre aborto no Brasil: uma síntese. R. bras. Est. Pop. São Paulo, v. 23, n. 2, p. 369-374, 2006.

PRADO, Danda. O que é aborto. Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Abril Cultural / Brasiliense,  1985.

ÁVILA, Maria Betânia. Modernidade e cidadania reprodutiva. Revista Estudos Feministas, v. 1, n. 2, p. 382. UFSC: Florianópolis, 1993.