Brasil registra mais de 800 denúncias de intolerância religiosa em 2021

#ParaTodasVerem: A imagem possui as cores cinza e amarelo. No topo, a logo do CRESS PR. Ao centro, o texto: “Não se cale diante da intolerância religiosa”. Logo abaixo do texto, vetores que simbolizam diferentes religiões. Por fim, na parte inferior da imagem, o texto “21.01 – Dia Nacional do Combate à Intolerância Religiosa”.

Em 2021, a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH) registrou 829 denúncias de intolerância religiosa e 962 violações relacionadas a crença, culto e de não crença. A falta de conhecimento sobre outras culturas é um dos principais fatores que contribui para que casos de intolerância continuem acontecendo, mesmo a prática sendo considerada crime pela Lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997.

A intolerância não é apenas a atitude violenta em relação à manifestação de diferentes expressões da religiosidade, mas também a omissão frente ao desrespeito com os diferentes cultos, rituais e as formas diversas de expressar crenças e comportamentos religiosos de diferentes grupos sociais. Segundo a professora Olegna de Souza Guedes, docente da Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Política Social da UEL, de formas diversas e em conformidade com diferentes contextos históricos a intolerância frente a rituais místicos ou expressões diversas de religiosidades sempre se fez presente.

“Em linhas gerais, a intolerância religiosa aparece entre grupos étnicos ou diferentes povos que compõem uma determinada nação. São grupos nos quais se impõem uma relação de dominação política, em sua maioria associada ao poder financeiro. Nessas relações se estabelecem assimetrias ideopolíticas e, dentre estas, as que se estabelecem entre as religiões.  Assim, a intolerância religiosa se caracteriza pela negação que vem carregada de atitudes persecutórias em relação a diferentes expressões das religiões, mas não pode ser dissociada da dominação política”, explica Olegna.

O Conselho Regional de Serviço Social do Paraná (CRESS-PR) destaca que as (os) Assistentes Sociais, como profissionais que respondem eticamente por suas ações profissionais, têm entre os princípios fundamentais o necessário para orientar ações que promovam o respeito à diversidade e combate a toda forma de exploração e preconceito.  “É dever da categoria se empenhar no combate a toda e qualquer forma de intolerância.  É necessário ter muito cuidado com a ‘falsa tolerância’, ou seja, a aquela em que para evitar dissenso, debates ou confronto, adotam-se atitudes omissas que encobrem a perpetuação da intolerância”, garante Olegna.

Intolerância religiosa e o racismo

Em entrevista ao Brasil de Fato, Ana Gualberto, coordenadora de ações com comunidades negras tradicionais da organização ecumênica Koinonia, explica que “embora a intolerância religiosa possa ser praticada por qualquer outra fé, no nosso país mais de 75% dos casos são contra pessoas de religião de matriz africana”.

Iniciado no Candomblé há mais de 18 anos Conselheiro do CRESS-PR e pertencente do terreiro do Gantois na Bahia, o Assistente Social e conselheiro do CRESS-PR, Jackson Michel Teixeira da Silva, explica que, historicamente, o candomblé, a umbanda e outras religiões de matrizes africanas são perseguidas e demonizadas. “Atribuem ao candomblé um demônio que não existe em nossa tradição. O candomblé é uma religião que cultua a natureza, nossos orixás estão diretamente ligados aos elementos da natureza, em nosso culto não existe uma figura do diabo”, explica.

Essa demonização das religiões de matrizes africanas foi disseminada por anos pela cultura cristã, trazida pelos colonizadores europeus. A falta de conhecimento que a sociedade possui da cultura contribuiu para essa perseguição. “O candomblé surge da resistência do povo negro que foi escravizado, meus antepassados foram arrancados da mãe África e trazida para o Brasil onde tiveram quase tudo roubado, sua vida, sua força de trabalho, sua tradição, os negros eram proibidos de cultuar sua fé, de realizar o culto dos orixás. Com muita resistência, nas senzalas, foram se organizando e criando estratégias de manter o culto aos orixás”, acrescenta Jackson.

A intolerância religiosa acompanha a intolerância racial que ainda enfrentamos. Olegna explica que a história escravocrata do Brasil, que cultua a colonização eurocêntrica, é possível perceber a violenta dizimação das religiões dos povos africanos e originários que foram escravizados. “Esses povos tiveram dizimadas sua liberdade e, portanto, suas expressões religiosas. Não superamos essa cultura eurocêntrica e continuamos cotidianamente a cultuar valores avessos à valorização das diferenças entre nossos povos”, explica a professora. 

Mesmo tendo a laicidade prevista em sua Constituição, em diversos órgãos públicos brasileiros é possível observar algum símbolo religioso – geralmente relacionados ao cristianismo. Além, é claro, do domínio exercido por algumas emissoras de televisão e grupos de igrejas neopentecostais, que continuam propagando o ódio e a aversão. “Essas igrejas para conseguir fiéis, e obter lucros arrecadando dinheiro, ataca e demoniza nossa religião”, enfatiza Jackson.

Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa

Em 21 de janeiro é celebrado o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. A data é um marco histórico e homenageia a ialorixá Gildasia dos Santos, que morreu nesta mesma data, em 2000, após sofrer um ataque dentro do seu terreiro de Candomblé fundado em Itapuã (BA) na década de 1980, o Ilê Axé Abassá de Ogum. Conhecida como Mãe Gilda, a ialorixá também exerceu um papel importante como ativista social.

O jornal Folha Universal publicou, em outubro do ano anterior, uma foto de Mãe Gilda. A reportagem trazia violentas e falsas acusações contra as religiões de matrizes africanas. Depois que foi publicada, diversas pessoas invadiram e vandalizaram o terreiro de Mãe Gilda, inclusive agredindo fisicamente seu marido. A saúde de Mãe Gilda piorou após o crime e ela faleceu, vítima de um infarto.

O dia da morte de Mãe Gilda foi fixado como Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa em 2007. Mas 15 anos depois não houveram mudanças significativas no combate à discriminação e intolerância religiosa. Ao Brasil de Fato, Ana Gualberto relata que “gostaria muito de estar aqui celebrando, dizendo que a gente tem números negativos. Mas infelizmente, nos últimos quatro anos, o que a gente tem percebido é um acirramento dos conflitos”.

Além da dominação das igrejas em diversas áreas, os constantes ataques à cultura, o desmonte das pastas relacionadas aos Direitos Humanos e os discursos de ódios dos representantes do atual Governo estimulam práticas como as que aconteceram no terreiro de Mãe Gilda. “No Brasil, a intolerância religiosa é considerada crime de ódio. Porém, essa lei não tem nenhum comprometimento com a realidade do dia a dia dos candomblecistas. Não restam dúvidas de que esse preconceito é uma tentativa de excluir uma era de resistência das pessoas escravizadas no Brasil. Temos muito a construir no que se diz respeito a políticas públicas para população negra de nosso país. E, sim, o combate a intolerância religiosa está diretamente ligado a políticas públicas de combate ao racismo. Precisamos tirar as leis do papel e materializar em nosso cotidiano”, completa Jackson.

Nova Lei de Combate à Intolerância no Paraná

Na quinta-feira, 20/01, data que antecede o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, o secretário de Justiça, Família e Trabalho do Paraná, Ney Leprevost, participou de uma reunião com representantes de diversas religiões. Padres, pastores evangélicos, representantes das comunidades judaicas e muçulmanas, kardecistas e membros de religiões de matrizes africanas foram convidados a participar do encontro, quando foi apresentada a minuta do projeto da Lei Estadual de Proteção à Liberdade Religiosa e Combate à Intolerância no Estado do Paraná.

A proposta cria mecanismos administrativos para proteger a liberdade religiosa contra grupos que propagam discurso de ódio religioso e racial. Segundo a Agência Estadual de Notícias do Paraná (AEN), o anteprojeto foi encaminhado para lideranças religiosas do Estado para que elas possam contribuir com a proposta. Após esse processo, será encaminhado para a Casa Civil e na sequência para os debates na Assembleia Legislativa. “Práticas que semeiam o ódio, o racismo e a intolerância são inadmissíveis. É dever do Estado e da sociedade o combate diário a essas agressões”, afirmou Leprevost à AEN.

Segundo a legislação nacional, “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso, vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso tem uma pena prevista de um mês a um ano de detenção e multa”. Assim, a lei estadual também prevê punições com multas para quem cometer atos de intolerância religiosa, de acordo com o Código Penal Brasileiro.

CRESS-PR apoia o combate à intolerância religiosa

Como dito anteriormente, as (os) Assistentes Sociais têm o dever de contribuir com a luta contra a intolerância religiosa. Segundo Jackson, a categoria é convocada a intervir no âmbito da defesa dos direitos. “Faz se necessário, portanto, que façamos uma leitura crítica a cerca dessa realidade. Temos que nos apropriar de conhecimentos sobre o fenômeno do racismo e de suas diversas expressões na vida social. Uma vez que assumimos o compromisso com está pauta, que deve ser sempre central no Serviço Social, contribuiremos para o fortalecimento de nosso Projeto Ético Político profissional, pois só iremos construir outra sociabilidade quando, de fato, vivenciarmos valores emancipatórios e caminharmos para uma sociedade livre de qualquer forma de opressão e descriminação racial, de classe e patriarcal”.

Na série “Assistente social no combate ao preconceito”, o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) traz uma edição sobre o racismo, um material rico em informações e que provoca a reflexão. “A única forma de combatermos o conservadorismo, a constante violação de direitos e a criminalização da população negra, pobre e periférica é fortalecendo a dimensão política respaldada pelos princípios éticos de nossa profissão. Temos muito a contribuir e nosso código de Ética nos aponta a isso”, finaliza Jackson.