GERAÇÃO DE RENDA PARA MULHERES E DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO: Estratégias para o trabalho Feminino e a conquista da autonomia econômica no contexto da reestruturação produtiva

Autoria: Anne Grace Gomes, Cassia Maria Carloto
Publicação: IV Congresso Paranaense de Assistentes Sociais

Introdução

Este artigo tem como objetivo, refletir sobre os limites da proposta dos grupos de geração de renda para mulheres no que se refere à conquista da autonomia econômica, sob a perspectiva das relações de gênero e da divisão sexual do trabalho. Parte-se da hipótese que os grupos de geração de renda vinculam ao seu conteúdo a prática de atividades que se encontram circunscritas na divisão sexual do trabalho, que na perspectiva histórica, tem (re) construído a desigualdade de gênero, à medida que reforça e dicotomiza práticas consideradas femininas e masculinas, sendo as primeiras invisibilizadas dentro da sociedade. No contexto da reestruturação produtiva, na qual se assiste o processo de inovação tecnológica na produção e agregado a este fato, a precarização e desregulamentação do trabalho assalariado formal, assim como o crescimento do desemprego estrutural, que atingiu homens e mulheres na mesma medida. Entretanto, na leitura fundamental da perspectiva das relações de gênero e da divisão sexual do trabalho, é possível afirmar que o rebatimento das transformações ocorridas no padrão de acumulação capitalista, foram diferentemente vividas pelos sexos, sendo que as mulheres, vinculadas a nossa análise, experimentaram essas mudanças no plano da invisibilidade das suas práticas, (re) construídas nas relações entre os sexos, o que trouxe outros tipos de dificuldades e necessidades quanto ao trabalho que merecem ser discutidas.

Em que proporção os trabalhos desempenhados pelas mulheres nos grupos de geração de renda obtêm aceitação e espaço no mercado capitalista? São valorizados enquanto trabalho? Estas questões são de fundamental importância para se compreender os limites e possibilidades deste tipo de política pública – que vem crescendo em todo Brasil – enquanto estratégia de promoção de autonomia econômica para mulheres em condição subalternizada no mercado, sem perder de vista a contribuição da leitura sob a perspectiva de gênero, que traz os elementos essenciais para uma discussão crítica acerca de tais proposições.

Divisão Sexual do Trabalho

A definição de divisão sexual do trabalho expressa como categoria as relações de poder entre homens e mulheres, poder que se distribui de forma desigual, conformando historicamente a subordinação feminina e sua invisibilização no processo de construção da história. De acordo com Kergoat (2003), a divisão sexual do trabalho é a forma de divisão social do trabalho decorrente das relações sociais entre os sexos, adaptadas historicamente e em cada sociedade. Traduz-se na perspectiva da organização social de tarefas e funções distribuídas entre os sexos, sendo que as práticas sociais dos homens revelam maior valor social que das mulheres. Esta conformação também refletiu um processo de separação dos espaços de pertencimento, vinculando as práticas sociais masculinas à esfera produtiva, e as práticas femininas ao espaço da reprodução e dos cuidados. Esta relação marcou não só as relações sociais entre os sexos, como também marcou por anos a produção teórica, que dividiu estas relações em espaços, sem pensar na fundamental articulação dos mesmos para a produção da sociedade.

Conforme Kon (2005), a divisão sexual do trabalho tem sua origem na família. Na análise da história, principalmente no período que compete à fase predominantemente rural e a pré – industrial, é possível perceber que as práticas desenvolvidas por homens e mulheres na unidade familiar, de modos diferenciados, eram partícipes do processo de produção de bens e serviços, utilizados não só pelos familiares, como também pela comunidade ao qual pertenciam. O trabalho feminino se definiu nesta divisão por sua função de reprodução da força de trabalho, o que segundo Kon (2005:2) “desta função se originam as diferentes formas que tem assumido a subordinação feminina, em distintas sociedades”. Para a autora o lugar que a mulher ocupa na divisão sexual do trabalho vincula-se a função biológica determinada socialmente de criação e procriação dos filhos, não se tratando somente de gerar, mas principalmente do papel de formação e manutenção viabilizada através dos cuidados, educação, transmissão de valores. Mesmo com o ingresso das mulheres na esfera da produção, a visão tradicional do “dever” materno-conjugal, continuou a ser considerada função da mulher.

As práticas sociais das mulheres, portanto, estruturaram-se em torno da imagem materna e conjugal, assim como o trabalho feminino teve sua vinculação direta à esfera doméstica, a família e a produção dos cuidados; funções que, na ordem patriarcal, assumiram um status inferior na construção da sociedade, e por isso, invisibilizados enquanto atividades de relevância econômica.

Para Hirata e Kergoat (2007), a definição do conceito, fruto do processo histórico dos movimentos feministas – principalmente na França – se fez na necessidade de reproduzir teoricamente a invisibilidade do trabalho da mulher na sociedade, efetuado gratuitamente e ancorado do discurso de função “natural” e amor materno conjugal. Este foi o pressuposto inicial para a origem do termo, que permitiu descaracterizar a imagem de trabalho como sendo somente prática masculina, realizada na esfera da produção, para incluir a mulher como também trabalhadora, e a função doméstica enquanto trabalho; como apontam Hirata e Kergoat (2007: 597) ao afirmarem que “as análises passaram a abordar o trabalho doméstico como atividade de trabalho tanto quanto o trabalho profissional, isso permitiu considerar “simultaneamente” as atividades desenvolvidas na esfera doméstica e na esfera profissional”. Nesta perspectiva, para as autoras a definição da terminologia consiste:

A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais entre os sexos; mais do que isso, é um fator prioritário para a sobrevivência da relação social entre os sexos. Essa forma é modulada histórica e socialmente. Tem como características a designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apropriação pelos homens das funções com maior valor social adicionado (políticos, religiosos, militares, etc) (HIRATA; KERGOAT, 2007: 599).

É importante reiterar que divisão sexual do trabalho não se refere a uma categoria a – histórica tampouco insensível às mudanças sociais e culturais, pelo contrário, a análise cuidadosa da história permite deduzir a trajetória das relações sociais entre os sexos e a organização das suas práticas no conjunto da sociedade, e o fato de homens serem associados à produção, e mulheres à reprodução, não significa necessariamente que estejam confinados a esses espaços sem que possam transitar.

Portanto, não mais que as outras formas de divisão do trabalho, a divisão sexual do trabalho não é um dado rígido e imutável. Se seus princípios organizadores permanecem os mesmos, suas modalidades (concepção de trabalho reprodutivo, lugar das mulheres no trabalho mercantil etc.) variam fortemente no tempo e no espaço (KERGOAT, 2003:56).

O deslocamento da força de trabalho feminina para a atividade de produção, em resposta as demandas colocadas pela emergência do desenvolvimento capitalista e pela racionalidade das relações de produção, representa a flexibilização de valores, em detrimento do modelo “patriarcal”, quanto ao lugar de pertencimento da mulher, que, no entanto, não configura a solução do problema, mas sim o surgimento de novos problemas, mais complexos, que se circunscrevem não só no campo de análise das relações sociais de sexo, mas também no conflito entre capital e trabalho, nas relações entre as classes sociais e nos processos sociais que dão inteligibilidade ao sistema capitalista.

(Re) configurações da divisão sexual do trabalho

Ao considerar a divisão sexual do trabalho como uma categoria dinâmica, que se (re) constrói no interior das relações sociais de produção, fica expressa a necessidade de ir além das análises que colocam apenas no plano do simbólico, ou seja, de construção cultural, as desigualdades produzidas nas relações entre os gêneros, ainda que se considere sua presença e influência no que se refere aos elementos que organizam essas relações (KERGOAT, 2003). Assim como indica Galeazzi (2001), a importância das mulheres no processo produtivo brasileiro vem sendo assistido desde o inicio da industrialização, veiculada a indústria têxtil. Neste contexto, a presença da mulher no mercado produtivo veio se intensificando e assumindo espaços e lugares até então inimagináveis para a mulher, “diante de diferentes conjunturas econômicas, até o final dos anos 90” (GALEAZZI, 2001, p.61).
Ao analisar o comportamento da força de trabalho feminina no Brasil nos últimos anos, o primeiro fato a chamar atenção é a intensidade e constância do seu crescimento. Com um acréscimo de cerca de 12 milhões e uma ampliação da ordem de 63%, as mulheres desempenharam um papel muito mais relevante do que os homens no crescimento da população economicamente ativa nos dez anos examinados (BRUSCHINI, 2000, p.14).

É fato que a perspectiva de inserção da presença feminina no mercado produtivo não se dá em condições homogêneas e paritárias ao trabalho masculino, e tampouco retrata uma mudança complexa no sistema de valores e crenças que marcou profundamente a história das mulheres, associando-as as tarefas domésticas. Sua maior representação consiste na necessidade do capital em aumentar o contingente de força de trabalho, tanto que não há o abandono do trabalho doméstico, em substituição ao trabalho produtivo, trata-se de um processo em que o trabalho passa a ser duplamente explorado: na fábrica e em casa. Conforme Bruschini (2000) a identidade construída em torno do espaço doméstico condiciona a participação feminina no mercado de trabalho, não só ao que se refere à qualificação e à oferta de emprego, posto que a determinação da “conciliação” de tempos – entre família e trabalho – o que dificulta se não impede a valoração do trabalho feminino, visto que “a constante necessidade de articular papéis familiares e profissionais limita a disponibilidade das mulheres para o trabalho, que depende de uma complexa combinação de características pessoais e familiares, […] fatores como esse afetam a participação feminina, mas não masculina, no mercado de trabalho” (BRUSCHINI, 2001, p.17). Desta forma, é possível deduzir a impossibilidade de caracterizar classe trabalhadora sob a construção de pertencimento de classe de forma homogênea (HIRATA; KERGOAT, 1994), visto que o trabalho é vivenciado de formas diferentes por homens e mulheres, assim como os rebatimentos do padrão acumulativo do capital também serão.
As relações de classe e as relações de sexo são, portanto relações estruturantes e fundamentais da sociedade. […] trata-se de afirmar que as práticas, a consciência, as representações, as condições de trabalho e de desemprego dos trabalhadores e trabalhadoras são quase sempre assimétricas, e que raciocinar em termos de unidade de classe operaria sem considerar o sexo social leva a um conhecimento truncado – ou pior, falso – do que é uma classe social (HIRATA; KERGOAT, 1994:95).

Portanto, seria equivocado analisar momentos históricos do modo de produção capitalista apenas numa perspectiva unilateral – visto que ao se tratar de classe trabalhadora, historicamente se pensou no trabalhador masculino – sem fazer os devidos recortes, como tocante as relações de gênero, pois o desenvolvimento das práticas sociais, bem como os reflexos que o trabalho subsumido ao capital sofre, se apresentará de formas diferentes para os sexos, exigindo respostas diferentes para a manutenção da sobrevivência.

Reestruturação produtiva e precarização do trabalho: Análise do trabalho feminino

A década de 80 marca um profundo processo de transformações econômicas, sociais e políticas no cenário mundial. Trata-se da redefinição, não só do padrão acumulativo do capital, mas também do corpo organizativo do Estado – face ao modelo de bem estar social, visto na maioria dos países desenvolvidos – com a incorporação do acervo ideológico-político do neoliberalismo. Os reflexos dessas mudanças são sentidas por todo o conjunto da sociedade, principalmente para a classe trabalhadora, que conforme Antunes (2008, p.23) “sofreu a mais aguda crise deste século, que atingiu não só a sua materialidade, mas teve profundas repercussões na sua subjetividade e, no mínimo inter-relacionamento destes níveis, afetou a sua forma de ser”.

O avanço tecnológico – vinculado com o processo de investimento decorrente da expansão do mercado financeiro – aliado ao conjunto de modificações inauguradas pela racionalidade toyotista tal como a especialização flexível, método Kan Ban, Just in time, sindicalismo corporativista, entre outros; terão funções estratégicas para a organização da produção, e principalmente da força de trabalho, tal como trata o autor quando cita a tecnologia enquanto fator de pressão para retração do movimento operário – profundamente combativo, principalmente na década de 60 – para o fortalecimento dos grandes capitais frente ao aumento da concorrência na fase monopólica, bem como para o “enxugamento” do quadro profissional das indústrias, lembrando que, este último, foi fundamental para a estruturação de uma produção que passou a veicular trabalho manual e intelectual, o que não se trata, necessariamente, de um avanço na organização produtiva, visto que intensifica o ritmo de exploração do trabalho, ou como nas palavras de Antunes (2000, p.53):

De fato, trata-se de um processo de organização do trabalho cuja finalidade essencial, real, é a intensificação das condições de exploração da força de trabalho, reduzindo muito ou eliminando tanto o trabalho improdutivo, que não cria valor, quanto as suas formas assemelhadas, especialmente nas atividades de manutenção, acompanhamento, e inspeção de qualidade, funções que passaram a ser diretamente incorporadas ao trabalhador produtivo.

Nesta perspectiva, sem duvida, o lugar mais afetado foi o trabalho assalariado, que sofreu ampliados níveis de desregulação, o que culminou no aumento da exploração, assim como na desorganização da classe trabalhadora, sendo a última afeta por três consideráveis razões: a primeira referente à pressão exercida pela “sombra” do aumento do exército de reserva – o que, de modo reiterado, desestabilizou a “garantia” de emprego; a segunda, em razão do desmantelamento da visão de classe operária, na medida em que cresceu a informalidade (TAVARES, 2004), e, portanto o número de trabalhadores ligados diretamente a unidade produtiva; e por último a descentralização produtiva, que se realizou através da terceirização, e corroborou com a desconcentração da classe operária, na medida em que fragmentou o trabalho em unidades menores, desarticulando os trabalhadores e precarizando as relações de trabalho.

A outra face deste projeto reside no fato de que a mão de obra dispensada da indústria, em virtude da “substituição” do seu posto pela máquina, não mais será reabsorvida pelo mercado de trabalho, consubstanciando no desemprego estrutural, fenômeno sentido em contexto mundial, mas principalmente nos países periféricos, como o Brasil, que encontrou maiores dificuldades de adaptação ao novo esquema de produção (POCHMANN, 2001).

Assim como os processos desencadeados não são homogêneos, e assumem aspectos peculiares em conjunturas específicas, tampouco a classe trabalhadora pode sentir os reflexos desta reestruturação de forma igual. Para tanto Neves (2000) reitera a essencialidade de se “desagrupar” a categoria de classes, para então pensar a perspectiva das mudanças com recorte de gênero, raça/etnia, geração, entre outros. Sua abordagem com a dimensão de gênero – mais especificamente – justifica-se pela necessidade de analisar como as mudanças, que a principio se conjuga no campo da pretensa “neutralidade” das relações de sexo e da igualdade sob uma suposta identidade de classe, atingem homens e mulheres, visto que, nas palavras de Neves, a ilustração desta diferenciação dos trabalhos realizados pelos sexos, fica evidente na análise da unidade de produção (2000, p.172):

A qualificação maior da mão de obra ocorre para um grupo de trabalhadores, geralmente masculinos, situados nas empresas de ponta da cadeia produtiva. […] Para um número cada vez maior de trabalhadores e, em especial, de trabalhadores femininos, a inserção no processo produtivo ocorre  ao longo da cadeia produtiva que se utiliza do trabalho taylorista/fordista, do trabalho precarizado e de contratos temporários baseados na lógica de redução de custos.

Não se trata de afirmar uma suposta relação que induz ao pensamento de que o trabalho feminino foi mais prejudicado na ordem da reestruturação produtiva, pois os impactos das mudanças ocorridas na racionalidade do modo de produção atingiram tanto homens quanto mulheres da classe trabalhadora, que sentiram os efeitos perversos, principalmente no que se refere ao aumento desmedido do desemprego. Entretanto, as continuidades que marcam as clivagens de gênero na perspectiva da divisão sexual do trabalho, são fatores que dão inteligibilidade às desigualdades que se expressam no trabalho de homens e mulheres

Segundo Neves (2000), as modalidades de trabalho parcial, segmentado, com contrato por tempo determinado e trabalhos a domicilio aparecem sendo executados, em maior escala, pela mão de obra feminina, posto que sua qualificação informal, adquirida no trabalho desenvolvido no âmbito doméstico é utilizada, sem que haja qualquer valorização desta atividade. No contexto da ampla difusão dos avanços tecnológicos, conforme aponta a autora, o trabalho feminino – mesmo se apropriando do conhecimento embutido nessas inovações – permaneceu à margem do processo produtivo, assumindo, portanto, os trabalhos mais precários, com menores salários, através de “tarefas simultâneas e flexíveis – ocasionando intensificação do ritmo de trabalho – e perda dos direitos legais” (NEVES, 2000, p.182). De acordo com Hirata (1998 Apud Neves, 2000), a preferência em inserir mulheres em trabalhos menos qualificados, assim como em tempo parcial reflete o condicionamento do lugar ocupado pelas mulheres na divisão sexual do trabalho doméstico e profissional, no qual a mulher ainda é considerada a figura chave de promoção dos cuidados no que se refere à família. Antunes (2000) também destaca esta perspectiva ao lembrar que na divisão sexual do trabalho, operada dentro das unidades de produção, as atividades concebidas como de capital intensivo, são ocupadas pelo gênero masculino, enquanto as funções menos qualificadas e fundadas no trabalho intensivo são destinadas às mulheres. Ao analisar o trabalho de Anna Pollert, Antunes (2000, p.106) problematiza a conjuntura da diferenciação do trabalho masculino e feminino no espaço fabril:

Nas pesquisas que realiza no mundo do trabalho no Reino Unido, Anna Pollert, ao tratar desta temática sob o prisma da divisão sexual do trabalho, afirma que é visível a distinção entre trabalhos masculino e feminino. Enquanto aquele se atém na maior parte das vezes às unidades onde é maior a presença de capital intensivo (com máquinas mais avançadas), o trabalho das mulheres é muito frequentemente restrito às áreas mais rotinizadas, onde é maior a necessidade de trabalho intensivo.

Quando se defronta com unidades tecnologicamente mais sofisticadas, conforme trata Pollert (1996 Apud Antunes, 2000) constata-se que o trabalho feminino tem sido utilizado para a execução de atividades marcadas pela rotina, em que não há a necessidade de grande qualificação, e nas quais impera a forma de trabalho marcado pelo contrato temporário, entre outras formas de precarização. Esse processo se dá, de fato, não por que mulheres assumem estes postos porque não são qualificadas, mas porque não conseguem se qualificar, já que são associadas aos postos de trabalho que conotam a dimensão da baixa valorização[1], assim como apontam Lavinas e Barsted (1996) ao compreenderem que as possibilidades de qualificação do trabalho feminino tornam-se mais limitadas, seja por causa da dificuldade em assumir postos mais qualificados – o que lhe conferiria maior experiência profissional – ou pela dificuldade no acesso a cursos profissionalizantes, que também se dificulta por duas vias: a primeira refere-se às características discriminatórias do mercado de trabalho; e a segunda reside na ineficiência ou falta de políticas e serviços capazes de “desobrigarem” mulheres das tarefas domésticas, e portanto dá-las a oportunidade de aumentarem seu nível de competitividade no mercado.

No contexto de uma profunda agudização da questão social, reflexo das alterações assistidas no cenário político e no padrão de acumulação capitalista, foram se desenhando uma série de estratégias, materializadas em políticas sociais, para intervir no conjunto de expressões desta questão. Não cabe aqui analisar todas as determinações deste processo, por isso faremos uma leitura a respeito das políticas voltadas para as mulheres, na perspectiva da “auto-gestão” ou das medidas para promover autonomia econômica – observado o aumento significativo da vulnerabilidade entre mulheres e homens – evidenciando em que medida elas de fato atuam sobre as clivagens de gênero presentes na divisão sexual do trabalho, e, por conseguinte possibilitam a real conquista da autonomia econômica pelas mulheres na perspectiva da sociedade do trabalho.

A centralidade das políticas de geração de renda para mulheres nas agendas públicas vem se desenhando sobre o pressuposto da conquista da autonomia econômica pelas mesmas, como meio para a superação da condição que as subalternizam. Neste aspecto, entende-se autonomia econômica como a capacidade de gerar renda para o próprio sustento e da família e/ou complementação da renda familiar. As atividades, na sua maioria, são consideradas de baixo custo de produção, e se apóiam em funções como cabeleireira, costureira, doceira, entre outras, que remetem as típicas atividades consideradas pertencentes às práticas femininas.

Geração de renda, trabalho e autonomia econômica

A conquista da autonomia econômica, neste sentido, encontra alguns obstáculos. O primeiro deles refere-se ao desenvolvimento de atividades consideradas “femininas” e, que de algum modo, sempre pertenceram ao universo do trabalho doméstico – como já abordado aqui, práticas historicamente invisibilizadas e de baixo valor social, assim, como coloca Barbosa (2007:119) quando diz que a cadeia produtiva autônoma encontra-se subsumida ao ritmo e os ditames do mercado formal, deixando “a margem de autonomia pequena ou inexistente nos casos em que o empreendimento tem viabilidade econômica”. Outros problemas referem-se a obtenção de micro créditos para início do negócio, na medida em que as garantias exigidas pelas instituições financeiras muitas vezes extrapolam as possibilidades dessas mulheres, bem como a insuficiente análise de viabilidade econômica, refratando as possibilidades de sustentação no mercado.

É muita baixa a capacidade de sustentação econômica dessas atividades, com conseqüente impacto sobre as pessoas que nela se envolvem. Entre as 19 experiências consideradas inovadoras pelos gestores do plano, constata-se que nenhuma delas está referida a setores de ponta da economia, nenhuma está diretamente relacionada a atividades cujos níveis de desemprego tenham penalizado preferencialmente as mulheres (YANOULLAS, 2002:33).

As políticas de geração de renda que se pautam por esta perspectiva de intervenção, além de, pouco provavelmente, conseguirem atingir o pressuposto da conquista de autonomia econômica pelas mulheres, ainda, de acordo com Silveira (2003:68) “consagram e reproduzem a tradicional divisão sexual do trabalho e ignoram um processo de construção da cidadania “não regulada” que se assenta na visão de sujeitos integrais que circulam nos espaços público e privado com autonomia”. A autora ainda destaca que é preciso visualizar o contexto socioeconômico em que se opera a inserção da mulher no mercado de trabalho, e seus agentes condicionantes, tal como a precarização e os baixos salários, como uma forma de encarar os limites e as possibilidades de se propor políticas que, de fato, tragam subsídios para a conquista da autonomia econômica.

Para Godinho (2003) a responsabilidade de modificar as desigualdades sociais decorrentes da assimetria das relações de poder entre os sexos, cabe ao poder público, através de políticas que incorporem a perspectiva de gênero na sua agenda política. A autonomia no campo econômico tem seu eixo estruturante no trabalho e emprego, o que para a autora, fica restrito dentro das possibilidades do município, entretanto, o mesmo é responsável por políticas que atravessam diretamente o cotidiano destas mulheres, tais como escolas e creches, que dada a devida importância, podem possibilitar a liberação do tempo, utilizado na vida doméstica, para o desenvolvimento profissional e, consequentemente, a qualificação da presença da mulher no mercado de trabalho.

Tais políticas, ao mesmo tempo, possibilitam não apenas reduzir a desigualdade por meio da ampliação do acesso a serviços e direitos, mas também estender a responsabilização pública pelo bem-estar dos indivíduos e, neste sentido, rediscutir e colocar em cheque a responsabilidade atribuída às mulheres pela reprodução cotidiana (GODINHO, 2003:60).

A concretização da conquista da autonomia econômica através das políticas de geração de renda, neste contexto, precisa ser rediscutida, a fim de que se incorporem os elementos essenciais que pertencem atualmente ao debate acerca das relações de gênero, e em especial divisão sexual do trabalho, enquanto categoria essencial para a compreensão da organização das práticas sociais na sociedade, bem como os aspectos fundantes que invisibilizam as mulheres no processo de construção da história.

Considerações finais

É necessário considerar a dimensão sócio-histórica da divisão sexual do trabalho, vinculado a dinâmica estrutural das relações de classe, às práticas sociais de homens e mulheres e o conflito entre capital e trabalho. A compreensão destes fatores – que embora possuam categorias próprias, não deixa de estar imbricados na trama social – permite às políticas sociais a inclusão da discussão da questão de gênero desde o planejamento até a avaliação dos grupos de geração de renda, de modo que fortaleça o compromisso com a desconstrução das práticas sociais, que, historicamente, invisibilizaram o trabalho da mulher, podendo, neste sentido, avançar para além da reprodução de ações e discursos que ainda persistem na focalização na mulher, sem considerar a conjuntura da qual ela é sujeito.

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