“Na história do Brasil, nunca se fez uma reforma agrária de fato”, afirma assistente social

Jovana Cestille é assistente social e assentada no acampamento Eli Vive, em Londrina. Nesta entrevista para o CRESS-PR, Jovana comenta a importância do 12 de agosto no contexto de luta contra a violência no campo. Ela também fala sobre a reforma agrária no Brasil e a dificuldade dos serviços de Assistência Social chegarem até as famílias assentadas.

Confira a entrevista:

CRESS-PR: A próxima sexta-feira, 12 de agosto, é dia de luta contra a violência no campo. Qual a

importância desta data, levando em consideração o cenário brasileiro, onde os conflitos no campo parecem não cessar? E qual o papel dos assistentes sociais neste contexto.

Jovana: É importante para trazer esse debate para a sociedade brasileira. Porque, embora a economia brasileira sempre foi baseada na agricultura, a gente não tem nenhuma discussão mais aprofundada sobre as relações sociais existentes no campo, sobre os conflitos ou sobre a questão fundiária. Na história do Brasil, desde o processo de colonização até os dias atuais, nunca se fez uma reforma agrária de fato. Quando houve a abolição da escravatura, que seria o momento ideal para ter feito uma reforma agrária, não foi dado o direito aos trabalhadores escravizados de terem acesso à terra. Se a reforma tivesse ocorrido, o racismo estrutural que a gente vê, hoje, na sociedade, talvez não existisse. Se o Brasil já tivesse feito uma reforma agrária, provavelmente, estaríamos em outra condição social: de menos desigualdade. E é preciso esclarecer que outros países realizaram reforma agrária. O próprio Estados Unidos, por exemplo. A reforma agrária não é um processo socialista. É uma forma de contribuir para o desenvolvimento da sociedade.

Depois, na década de 60, quando houve uma nova possibilidade de reforma agrária, veio o golpe militar. E assim o Brasil, como nação, nunca se permitiu a realização de uma reforma agrária. E isso traz sérias consequências para o povo brasileiro. Por isso, é importante que, nós, profissionais da Assistência Social, entendamos este processo histórico. Porque quando você vai atender em um município, por exemplo, encontra-se muita coisa falando sobre os pioneiros daquele território, os colonizadores. Mas não se fala sobre o trabalho escravo que houve naquela região, que pode ter várias comunidades quilombolas. Ou não se fala sobre os povos e comunidades indígenas que estavam naquele território antes da colonização.

É importante compreender o processo de luta dessas comunidades, precisamos entender as questões sociais que permeiam aquela comunidade e distinguir como contribuir para que essas famílias acessem as políticas públicas.

CRESS-PR: A comissão Pastoral da Terra divulgou, em 19 de abril deste ano, o relatório “Conflitos no Campo 2021”, que traz dados preocupantes como o aumento de 75% nos assassinatos e mais de 1.000% nas mortes, em consequência de conflitos agrários. Na sua opinião, qual é o principal motivo desta onda incessante de violência? E quais são as ações, realizadas em âmbito nacional, para dar um basta a esta situação.

Jovana: Esse desgoverno tem feito de tudo para liberar o uso de armas. E aí a gente observa um aumento da violência no campo. Recentemente, o País acompanhou o caso do Bruno e do Dom, na Amazônia. Mas a imprensa, no geral, trata o assunto como um caso isolado. Quando, na verdade, a gente sabe que a violência naquela região é muito grande. Os povos indígenas estão sofrendo. E a própria imprensa não dá visibilidade. E também essa não é uma questão isolada lá na Amazônia. O Brasil inteiro sofre com essa liberação de armas.

No Paraná, temos um caso muito emblemático que é o assassinato do Antônio Tavares e de mais 2 mil companheiros do MST (Movimento Sem-Terra) que ficaram feridos quando se deslocavam para Curitiba para fazer um ato. Houve um confronto com a Polícia do Paraná na BR-277. Na época, este crime ficou impune. Mas agora, em 2022, o Estado do Paraná está respondendo na Corte Americana de Direitos Humanos. Por isso, eu acredito que uma ação que pode ser feita é realizar as denúncias internacionais, quando há violão de direitos humanos.

CRESS-PR: Você acredita que, nos últimos quatro anos, o Brasil teve alguma política pública colocada em prática para reduzir a violência no campo?

As políticas públicas para voltados para o campo, de modo geral, ou foram descontinuadas ou sobrou pouco recurso que inviabiliza a execução. Esta é uma prática desse desgoverno: não acabar com as políticas, mas também não alocar recursos suficientes.

Com relação a ações para reduzir a violência no campo, ele não fez nada. Porque os órgãos de fiscalização, praticamente, ficaram sucateados. E com relação as outras políticas públicas, podemos pegar como exemplo a questão da alimentação, que é tão relacionada com a produção de alimentos no campo e em assentamentos da reforma agrária. O Governo Lula criou o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), onde o Estado comprava o alimento dos agricultores familiares a preço justo. O PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar), onde os alimentos eram utilizados nas escolas para a merenda.

O que aconteceu nesses últimos quatro anos é que quase não teve recurso para execução destas políticas públicas. Agora, na reta final das eleições, foi alocado um pouco de recurso, mas a gente viu nos últimos anos o programa praticamente deixar de existir. E isso afetou muito os agricultores. Inclusive, cooperativas tiveram que fechar as portas, porque a renda gerada vinha dos programas.

No Paraná, a gente ainda consegue ter uma boa organização do PNAE. Mas na maioria dos estados brasileiros, a execução do programa é muito baixa.

CRESS-PR: No atual governo, é nítida a entrega de títulos de propriedades de terra, como uma tentativa frustrada e obscura de dizer que há ações de reforma agrária sendo executadas. Mas, na prática, a realidade é outra. Gostaria que você comentasse como enxerga as políticas públicas de reforma agrária e acesso à terra, atualmente, no nosso País.

Eu sou impactada, diretamente, com isso. Pois sou beneficiária da reforma agrária. Sou assentada no assentamento Eli Vive, em Londrina. E o nosso caso demonstra bem essa realidade. Nosso assentamento foi criado, oficialmente, em 2010. Quem assinou o decreto foi o Lula, mas ele foi implantado já no governo Dilma. Em 2013, já no período pré-golpe, então as famílias começaram a mudar para os lotes. E existe todo um processo para fazer o sorteio dos lotes e de estruturação do assentamento. Foi liberado um recurso para fazer as estradas, por exemplo. Mas a Prefeitura de Londrina não fez a obra. E em 2018 o recurso teve que ser recolhido.

Para ser titulado, o assentamento deveria ter recebido as infraestruturas necessárias. Cada lote teria que ser construída uma casa. E para isso os beneficiários recebem um crédito investimento. Antigamente, este recurso era liberado pelo INCRA (Instituto Nacional de Reforma Agrária). Depois, passou a ser pelo Minha Casa Minha Vida.

Hoje tem uma briga entre o município e o Governo Federal. Um joga a responsabilidade para o outro. Mas o fato é que, no nosso assentamento, ainda tem famílias que moram em barracos de lona. Nós não tivemos acesso ao crédito investimento, que poderia ter sido usado para construção das casas, ou poços artesianos para aqueles que não tem água. O desgoverno não tem recurso para nada, né.

No entanto, há uns 20 dias aconteceu uma reunião em um Lerroville para falar da titulação. As pessoas precisaram se deslocar até o distrito, que fica a uns 10 quilômetros. Aí no outro dia, precisaram voltar uns 15 ou 20 quilômetros para fazer a atualização cadastral. E na sexta-feira passada teve um outro evento, que é essa entrega de título. Mas isso é para chamar a imprensa e tirar foto. A gente sabe que o combustível está caro e que as pessoas estão com dificuldade financeira, que as nossas estradas são péssima. E pessoas têm que fazer vários deslocamentos do assentamento até o distrito. Antes, o Incra vinha para dentro do assentamento e fazia o trabalho aqui. Agora as famílias precisam se deslocar.

Aliás, muitas famílias pegam o título e não sabem o que fazer. Eles falam muito que o acesso ao título dá acesso a crédito. Mas isso acaba sendo um problema, pois muitas famílias vão colocar o lote como garantia para o crédito. E correm o risco de perder a propriedade.

Por trás deste movimento de entrega de títulos, como se fosse uma grande coisa, o que esse desgoverno está querendo é ganhar votos. E ele coloca as famílias que vão receber o título, automaticamente, como se fossem apoiadores deste desgoverno.

CRESS-PR: Se “é melhor morrer na luta que morrer de fome”, quais são as principais reivindicações, hoje, dos assistentes sociais que trabalham pela reforma agrária. E qual a contribuição que os profissionais do Serviço Social podem contribuir para reduzir a violência no campo.

Hoje, os assentados não tem acesso à assistência técnica e a extensão rural. E muitos profissionais da assistência Social atuavam nessas equipes. Então, não atuam, diretamente ,mais com os assentamentos. Temos muitos assentamentos que ficaram com dificuldade de ter acesso às políticas públicas da Assistência Social. No caso de Londrina, que eu acho que é um dos poucos municípios que existe esse acesso, a gente tem um profissional que vem com frequência ao assentamento e conhece a nossa realidade e nossas demandas.

Neste sentido, é de extrema importância que os (as) profissionais do Serviço Social conheçam a realidade agrária do Brasil. Compreendam esse processo de luta pela terra e também o processo de tentativa de criminalização dos movimentos organizados na luta pela terra. Até para não ter preconceito com as famílias assentadas e acampadas.

Se nas periferias da cidade grande, ainda existem muitas famílias com dificuldade de acesso às políticas públicas, no campo a realidade é ainda pior. As famílias não sabem qual é o caminho para ter acesso. Tomamos como exemplo o Bolsa Família. Muitas famílias que vivem no campo, acampamentos, ou assentamentos tem dificuldade em acessar o programa, porque na hora de fazer o cadastro não possuem uma carteira assinada. E este é um dos critérios para o Bolsa Família Muitas vezes as famílias têm que fazer a carteira de trabalho para poder apresentar para fazer o cadastro único. Então precisamos também ter essa compreensão da realidade do campo que tem especificidade que são diferentes né das questões urbanas.