Dia da Consciência Negra: a luta contra o racismo é diária e constante

Reforçar a luta pela igualdade racial é o objetivo do Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, celebrada neste sábado, 20/11. A data foi sugerida há mais de 50 anos por um grupo de jovens, participantes de um congresso realizado em Porto Alegre, em 1971. Neste dia também, em 1695, Zumbi dos Palmares, principal líder da resistência à escravidão no Brasil, e sua companheira Dandara, foram mortos por um grupo de bandeirantes liderados por Domingos Jorge Velho.

A escolha do dia 20/11 é justamente para destacar o protagonismo da luta por liberdade das (os) negras (os), deixando de lado a data de 13 de maio, data de assinatura da Lei Áurea, visto que a liberdade foi conquistada e não concedida. Embora o Dia da Consciência Negra tenha o registro histórico de seus 50 anos pela articulação do Grupo Palmares, foi oficialmente instituído apenas em 2011, por meio da Lei nº 12.519.

A data também busca incentivar a reflexão sobre a questão, principalmente quando há um Governo que ataca os direitos dessa parcela da população com discursos de ódio e senso comum. Mesmo representando mais de 50% da população brasileira, as pessoas negras continuam enfrentando diariamente preconceito e lutando por igualdade racial. Segundo Andréa Pires Rocha, mulher, afrodescendente, mãe, professora do Departamento de Serviço Social da UEL, Doutora em Serviço Social pela UNESP-Franca, graduada em Serviço Social pela mesma instituição e Mestre em Educação pela UEM, “a importância do 20 de novembro está no fato de descontruir a narrativa embranquecida da abolição, trazendo para o centro da reflexão a história de resistência negra reverenciando a luta quilombola que tem Zumbi dos Palmares e Dandara como principais referências.”, afirma.

“É preciso enegrecer (e indianizar) a forma que contamos a história do Brasil, evidenciando o ponto de vista dos negros, dos indígenas, dos povos originários, que estão há 500 anos reivindicando liberdade, ou seja, foram os primeiros protagonistas da luta pelos Direitos Humanos. Assim fortalecemos o entendimento de que “nossos passos vêm de longe”, como fala Jurema Werneck. A classe trabalhadora brasileira tem esses elementos em sua constituição. Por tudo isso que a comemoração do 20 de novembro é essencial para conjuntura atual, só não podemos parar nessa data, pois a pauta antirracista se mostra nos 365 dias do ano”, completa Andréa.

Luta contra o racismo

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 54% da população brasileira é negra. Ainda assim, são a minoria em cargos de liderança no mercado de trabalho e entre representantes políticos, mas compõem mais de 60% da população carcerária do país e são a maioria em subempregos.

A edição 2021 do Atlas de Violência, desenvolvido a partir de dados coletados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em 2019, mostram que 77% das vítimas de homicídios foram de pessoas negras. Ou seja, 29,2 a cada 100 mil habitantes. Além disso, a pesquisa revela que o quadro de violência contra pessoas negras se agravou nos últimos anos.

O racismo está intrínseco em nossa sociedade, desde expressões racistas até a ideia de que exista racismo reverso. Segundo o Assistentes Social André Henrique Mello Correa,residente no Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Coletiva da Fundação Municipal de Saúde de Ponta Grossa e Colegiado ao Nucress Ponta Grossa (2021-2023), os desafios centrais para enfrentamento do preconceito racial “se colocam no entendimento da nossa formação social e a compreensão do racismo enquanto fenômeno violento presente na realidade objetiva do conjunto da classe trabalhadora racializada, com manifestações particulares em nosso solo.”.

O Brasil foi construído por um processo de dominação/exploração dos povos tradicionais e pessoas escravizadas, que foram sequestradas por quase 400 anos. Mesmo após um processo de “abolição formal”, manteve-se as bases fundamentais de dominação, tendo o Estado como principal mecanismo de reprodução desta lógica a partir de sua inserção dependente no sistema capitalista internacional. Segundo Correa, é importante esta análise “por entendermos o racismo enquanto chave analítica fundamental da dinâmica do capitalismo, e que na sua dimensão estrutural (histórica e circunstancial), se manifesta no âmbito das instituições e nas relações sociais cotidianas em todos os âmbitos da vida coletiva. Basta olharmos os indicadores de desemprego, escolaridade, sistema prisional e mortes por intervenções policiais.”.

A luta antirracista deve se efetivar em todas as esferas da sociabilidade brasileira. Segundo a professora Andréa, são necessárias ações de combate ao racismo e fortalecimento de uma educação antirracista, sendo um dos desafios a efetivação das leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que dispõem acerca da obrigatoriedade do ensino sobre a história da África, Afro-brasileira e Indígena em todos os níveis da educação, inclusive nos cursos de Serviço Social. “Ressalto que apostar nas crianças é essencial, pois vamos formando uma geração que não terá o racismo como principal determinante na leitura que constrói sobre o mundo, a vida e a diversidade. Por outro lado, como temos dito, o racismo é estrutural e coloca a população negra nos piores lugares das expressões da questão social. O racismo se combate com políticas públicas, com garantia de direitos e ações afirmativas que envolve cotas e outras iniciativas.  Afinal de contas, “combinaram de nos matar e a gente combinou de não morrer”, como preconiza Conceição Evaristo”, enfatiza Andréa.

Serviço Social na luta antirracista

As (os) Assistentes Sociais têm um importante papel no combate ao racismo, principalmente em um momento de retrocessos sociais como os que temos vivido. O código de ética da profissão é uma ferramenta importante nesse contexto, com a “defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo”; o “empenho na eliminação de todas as formas de preconceito”; lutar por um “projeto profissional vinculado ao processo de construção de uma nova ordem societária, sem dominação, exploração de classe, etnia e gênero”, além de exercer o “Serviço Social sem ser discriminado/a, nem discriminar, por questões de inserção de classe, gênero, etnia, religião, nacionalidade, orientação sexual, identidade de gênero, idade e condição física.”.

Andréa explica que o racismo não é apenas mais uma forma de preconceito, mas sim um pilar que estrutura o Estado burguês. “Por isso, defendo intransigentemente que o processo formativo em Serviço Social tenha disciplina específica que discuta as relações étnico-raciais e, além disso, esse debate apareça transversalmente em todas as disciplinas que compõem a grade curricular”, afirma.

Segundo a Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS), “a formação da sociedade brasileira é marcada por uma estrutura racista, que precisa ser combatida dia após dia com ações de mudança estrutural.”. Com esse intuito, a ABEPSS tem avançado no debate dessa questão e tem reconhecido a urgência do debate étnico-racial no contexto da formação graduada e pós-graduada, bem como do trabalho profissional.

Entre as ações de combate ao racismo construídas pela ABEPSS recentemente, merecem atenção os materiais “Subsídios para o debate sobre a questão étnico-racial na formação em Serviço Social “ e “As cotas na pós-graduação: orientações da Abepss para avanço do debate”, ambos elaborados pela gestão “Quem é de luta resiste” (2017-2018). Saiba mais sobre os trabalhos desenvolvido clicando aqui!

Sendo o racismo estrutural; ele se manifesta institucionalmente e no âmbito das relações sociais nas unidades formadoras e instituições empregadoras, tanto públicas quanto privadas, das (os) Assistentes Sociais, o que não isenta a categoria desta dinâmica nas relações interprofissionais e na relação com as (os) usuárias (os) dos serviços. A pauta do combate ao racismo e da luta antirracista não é recente no âmbito da categoria. “O combate ao racismo é uma tarefa coletiva e cotidiana nos espaços de trabalho da categoria, seja na adoção do quesito raça/cor no processo e instrumentos de trabalho, por vezes negligenciado, embora se perceba a dinâmica do racismo institucional e seja um dado importante da realidade; a criação de espaços de diálogo nos espaços de trabalho; a inserção de disciplinas centrais e transversais ao currículo formativo, numa perspectiva de totalidade social; fortalecimento dos espaços de participação e controle social e movimentos sociais na perspectiva da luta antirracista, a exemplo das pautas do abolicionismo penal; contra a redução da maioridade penal, revogação das políticas de austeridade fiscal (Reforma Trabalhista, EC 95), defesa das políticas voltadas para população em situação de rua; a pauta das infâncias, adolescências e juventudes, dentre outros direcionamentos que exigem mediações e análise concreta da realidade concreta”, finaliza André Henrique Mello Correa.

A professora Andréa explica que mesmo em uma perspectiva crítica, há um grande apego a epistemologia branca europeia, que enquadra a realidade brasileira nas lentes da lógica moderna na formação de Serviço Social. “Existem muitos autores negros brasileiros, de outros países da América Latina e africanos que desenvolvem críticas a colonialidade e ao capitalismo, à exemplo de Clóvis Moura, Guerreira Ramos, Abdias do Nascimento, Fanon, Mbembe, Eric Willians, Césaire, Aníbal Quijano, autoras como Lélia Gonzales, Beatriz do Nascimento, Ângela Davis, Bell hooks, Maria Lugones, entre tantas outras”, destaca.

Segundo Andréa, há ainda protagonistas negros do próprio Serviço Social, como Rodrigues Alves e Maria de Lourdes do Nascimento, que na década de 1950 empreendiam a luta antirracista no interior da profissão. “Quem conhece essas pessoas? A que se deve essa invisibilidade? Precisamos estudar e romper com o mito da democracia racial. Esse passo é essencial, pois só podemos combater algo que sabemos que existe. Outro elemento é a consciência acerca dos privilégios da branquitude. Esse debate não se refere a uma disputa entre negros e brancos, mas a compreensão que independente da classe social, o simples fato de uma pessoa ter a pele branca lhe confere privilégios. Em contrapartida, o fato de ter a cor de pele preta ou parda, lhe traz muito mais desafios no bojo de uma sociedade que tem o racismo estrutural como base, o capitalismo como modo e produção e o Estado neoliberal de cunho penal como regra.”.

“Quando olhamos para duas famílias, uma branca e outra negra, que residem no mesmo território, tem a mesma renda, pegam o mesmo transporte público, os filhos estudam na mesma escola, a família negra terá sobre si um leque bem maior de mecanismos opressivos. O filho adolescente da família negra tem 77% mais chance de ser morto que o filho da família branca”, contextualiza Andréa. “Outro elemento muito importante é a demarcação do quesito raça/cor no exercício profissional. Não podemos ter receio de perguntar para uma pessoa com qual cor de pele ela se identifica. A professora e pesquisadora Kajali de Lima Vitório aponta que é nossa obrigação auxiliar as pessoas a se identificarem, até usarmos instrumentos para isso, como um cartão de cores de pessoas para que elas apontem qual é sua cor. Isso não é inútil, pois os dados levantados auxiliam na avaliação das políticas públicas. Enfim, nós, Assistentes Sociais, compromissados com os princípios do Projeto Ético Político do Serviço Social, precisamos ter um olhar que intersecciona as questões de classe, racial/étnica e de gênero/sexualidade para a análise da realidade e, por conseguinte, o planejamento, gestão e execução das políticas públicas”, finaliza.