Serviço Social na luta contra o fundamentalismo religioso

Depois de mais de 20 anos de domínio norte-americano, o Talibã retomou o poder em Cabul, capital do Afeganistão, no dia 15 de agosto de 2021. O fato representa um retrocesso histórico aos direitos humanos, principalmente para as mulheres. O grupo fundamentalista impõe uma interpretação radical e estrita da Lei Islâmica, proibindo mulheres de trabalhar, frequentar escolas e universidades, usar maquiagem e vestidos, entre outros.

Nos últimos anos, o Brasil tem visto um crescimento do conservadorismo e de ideias retrógradas baseadas em crenças religiosas que infringem direitos humanos essenciais e a liberdade dos indivíduos. O Serviço Social, por trabalhar diretamente com a população, em especial com pessoas em vulnerabilidades, pode contribuir na luta contra esse retrocesso. “Essa é uma tarefa demasiadamente grande; portanto, essa luta só pode ser vitoriosa se passar pelas principais organizações das classes trabalhadoras e populares, como sindicatos, movimentos sociais e partidos políticos”, explica Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar, Professor do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-graduação em Serviço Social e Política Social.

A luta contra qualquer preconceito em relação às diversidades da sociedade é prevista pelo Código de Ética da profissão. A Assistente Social e Presidenta do Conselho Regional de Serviço Social do Paraná (CRESS-PR), Andréa Braga, destaca que o Código de Ética das (os) Assistentes Sociais defende o respeito às liberdades de expressão e de culto, a laicidade do Estado e liberdade religiosa. O Código de Ética diz ainda que é dever da categoria profissional denunciar casos de violação de direitos, como tortura, maus tratos, discriminação, preconceito, abuso de autoridade individual e institucional.

“Nós cumprimos um importante papel na defesa do direito à liberdade religiosa, em nosso fazer profissional cotidiano. Temos o dever ético de defender o estado laico e garantir que nenhuma religião se sobressaia diante das demais em qualquer espaço ou atendimento de caráter público, incluindo o respeito com quem não tem religião”, enfatiza.

Ao tentar impor leis e normas de convívio coletivo baseadas em textos religiosos, contribuem para a construção de inimigos em toda parte, fazendo do crédulo em outra religião ou do ateu um infiel bem como um preconceito exacerbado por religiões de matriz africana e, que precisa ser combatido ou eliminado. Nesse sentido, o fundamentalismo afeta liberdades individuais, pois, emergindo do solo religioso, ele se espalha pelos mais diversos aspectos da vida, como aconteceu no Brasil, com a recente aproximação do fundamentalismo evangélico com o crime organizado no Rio de Janeiro e com o bolsonarismo.

Segundo Andréa Braga, a intolerância religiosa fere a liberdade e a dignidade humana, por isso é considerada como uma violação dos direitos humanos, uma vez que as liberdades de expressão religiosa e de culto são garantidas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e, no Brasil, pela Constituição Federal de 1988.

“Quando se fala em violência contra as mulheres, a opressão e o conservadorismo se intensificam neste cenário. Crescem os discursos conservadores e de ódios baseados no fundamentalismo religioso e na intolerância contra ideias de ampliar acesso e a autonomia dos direitos das mulheres”, pondera Andréa. “É essencial reafirmar permanente os direitos das mulheres. Como diz Simone de Beauvoir, basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. A vigilância deve ser constante”, acrescenta.

A população afegã tem convivido com medos e incertezas quanto ao seu futuro. Em pânico, centenas de civis invadiram a pista do aeroporto local querendo embarcar nos poucos aviões militares que ainda restavam no país e retiravam as tropas norte-americanas, que chegaram ao Afeganistão após o 11 de setembro, com a justificativa de combater o terrorismo. Dificilmente o Talibã teria forças para retomar o poder sem a interferência do imperialismo estadunidense na política local, é o que explica Ronaldo.

 “O imperialismo norte-americano teve uma participação ativa no Afeganistão, desde o treinamento oferecido aos mujahidins (guerrilheiros do Talibã) para lutar contra os soviéticos até a recente saída do território após duas décadas que não resultaram em efetiva reconstrução da economia e do estado afegãos abrindo espaço para a retomada do poder pelos ex-aliados, que no início dos anos 2000 haviam sido derrotados na “guerra ao terror” promovida pelo governo Bush”, contextualiza Gaspar.

No Brasil, temos vivido um retrocesso político e social e um crescimento do conservadorismo. Muitos brasileiros (e o próprio governo) defendem o autoritarismo pregado pelos Estados Unidos. Nesse contexto, há muitas semelhanças com a situação do Afeganistão, como o machismo, segregacionismo de minorias, incentivo à militarização, fomento à invasão das instituições laicas por ideias religiosas, negacionismo científico, entre outras.

Gaspar ressalta que há muitas diferenças também. “O Afeganistão foi devastado por guerras civis, nunca teve um parque industrial, está divido em povos/tribos com histórias de conflitos, foi palco de ocupação militar direta de grandes potências, como URSS e os Estados Unidos, tem baixíssimo desenvolvimento das instituições educacionais, as instituições democráticas do estado (burguês) nunca tiveram o desenvolvimento que, com todos os problemas, alcançaram no Brasil, além de outros aspectos políticos e culturais”, afirma.

Nesse momento, o Brasil e o Afeganistão vivem momentos muito diferentes, mas Gaspar destaca que há o risco de o País sofrer transformações regressivas que o aproximem da condição do Afeganistão. “O bolsonarismo é o movimento regressivo que mais próximo nos levou dessa situação até agora, especialmente se houver algo como uma guerra civil ou a intervenção do imperialismo para apoiar uma das partes em favor dos seus interesses estratégicos”, destaca Gaspar.  

Para a Professora Doutora Olegna de Souza Guedes, docente dos cursos de graduação e pós-graduação de Serviço Social da UEL, existente alguns elementos que contribuem para o fortalecimento do fundamentalismo religioso no Brasil, como a crescente criminalização da pobreza, o aumento de violência contra às populações ribeirinhas, comunidades tradicionais, aos pretos e aos que se defendem, de formas diversas, contra o patriarcado e os rígidos padrões morais estabelecidos para as relações, principalmente entre os sexos.

“Em paralelo à esta tendência, levanta-se a apologia a vestes que não nos cabem mais; a militarização, a apologia ao crime com a desregulamentação do uso de armas e discursos midiáticos que enfatizam o medo e proteção individual, além da desvalorização da pesquisa, da ciência, o retorno da ditadura militar. Tudo isso sobre o alarmante crescimento da pobreza e desmonte de direitos. Essa é uma outra face do fundamentalismo”, explica Olegna.

Olegna acrescenta que “o aumento da violência de gênero, religiosa e contra mulheres são apenas alguns pontos necessários para destacar a atuação de um grupo extremista religioso. Quais outros tipos de violência podem surgir a partir do momento que um grupo como o Talibã (ou a bancada evangélica do Brasil) assume o poder?”, indaga.

As mais variadas formas das violências citadas são noticiadas diariamente pelos jornais. Olegna destaca o caso da vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco, militante política, que exercia sua profissão a serviço de causas libertárias e emancipatórias e que foi morta sem que os vestígios dos criminosos fossem suficientes para identificá-los. “Quantas (os) defensoras (es) dos direitos humanos ainda morrerão sob o Ministério de Direitos Humanos ocupado por sujeitos sociais que se denominam porta-vozes da bancada evangélica? É um cenário assustador. ”, enfatiza.

O Serviço Social é um importante aliado na luta contra o extremismo e o fundamentalismo religioso crescente no país. “Nosso papel como Assistentes Sociais é lutar, cotidianamente, contra qualquer forma de preconceito em relação às diversidades. Entre elas a religiosa. Isso não significa, em hipótese alguma, que extremismos construídos na defesa de desvalores devam ser respeitados. Pelo contrário, a intolerância frente ações e ideários avessos à valorização do gênero humano é uma forma necessária e cotidiana da luta pela riqueza da diversidade humana”, finaliza Olegna.