Políticas familistas sobrecarregam as mulheres e fortalecem a desigualdade de gênero no Brasil

Cássia Maria Carloto é uma das principais estudiosas do tema do familismo. Crédito: Divulgação

A pandemia do coronavírus tem colocado milhões de brasileiros (as) expostos (as) a diversas situações de desigualdade e fragilidade, seja por conta das falhas no acesso à saúde, do crescimento do desemprego, da fome, da violência ou da carência de políticas públicas. E as mulheres foram as mais prejudicadas nesse processo. Além do desemprego, da informalidade no trabalho, da falta de acesso à renda e a políticas sociais ainda há a sobrecarga presente nos cuidados da casa, dos filhos e da família.

Um estudo de um grupo de pesquisa da Universidade Estadual de Londrina (UEL), com beneficiárias do Bolsa Família em Londrina, Guarapuava e Itambé demonstrou que 71,2% das entrevistadas relataram o aumento de trabalho doméstico e 82,9% informaram que se sentem mais sobrecarregadas, sendo o cuidado com as crianças o item mais relatado. “Com as crianças e adolescentes em casa aumentou o tempo gasto com preparo de alimentos, com lavagem de roupas, com limpeza da casa,  com atividades para distrair e ocupar o tempo das crianças e principalmente passaram a ter a responsabilidade de ensinar e auxiliar as crianças e adolescentes no ensino remoto o que tem causado muito sofrimento já que além de que em sua maioria não terem completado nem o ensino fundamental, não são profissionais da educação, não tem preparo nem formação para o ensino”, explica a professora de Serviço Social da UEL e coordenadora do grupo de pesquisa, Cassia Maria Carloto.

O cenário aponta para uma clara desigualdade de gênero a partir de uma rígida divisão sexual do trabalho, em que os trabalhos domésticos ficam sempre a cargo da mãe ou das mulheres da família. Cassia explica que apenas a divisão entre homens e mulheres já estabelece uma divisão de concepções, imagens e símbolos que são relacionados ao feminino e masculino e que fazem parte de toda uma construção social que vão “resultar em práticas sociais que vão colocar em lugares distintos os seres humanos e vão engendrar relações sociais baseadas na exploração de dominação de um conjunto “homens-masculino” sobre outro conjunto “mulheres-feminino””.

“Todos os espaços e práticas sociais vão trazer a marca dessa relação: o mundo do trabalho, da educação, da saúde, da mídia, do doméstico, da política, etc. Essa relação social  vai estar marcada por dominação e exploração de classe, gênero e raça/etnia numa formação econômica capitalista e patriarcal. Assim esses elementos que se articulam de forma consubstancial não vão ser vividos de maneira igual por todas as mulheres. A classe e a raça etnia vão engendrar os lugares, os sentidos, as formas como mulheres vão ser tratadas. Também mulheres que não vivem relações impostas pelo modelo heterossexual, terão vivências marcadas pela discriminação sexual.  Há nesse sentido um conjunto de lutas e reivindicações do conjunto das mulheres negras, das indígenas, de mulheres lésbicas, trans e todo o leque de possibilidades de estar no mundo”, afirma ela.

A partir disso, o que se percebe é que os direitos básicos são garantidos por lei mas há poucas ações e projetos que de fato viabilizem o acesso aos direitos mais básicos como trabalho, renda, educação, saúde, moradia, transporte e serviços de apoio. O cenário é ainda mais preocupante com a redução de políticas públicas que ofertem suporte contra a perda de direitos trabalhistas, de direitos reprodutivos e sexuais e discriminações de gênero e raça. Além disso, também houve o avanço das políticas familistas, aquelas que colocam sob responsabilidade da família e, consequentemente, das mulheres, a responsabilidade de proteção social. Cassia explica como o familismo pertence a uma política conservadora que só amplia a desigualdade no Brasil.

“No Brasil, a proteção social sob a égide das políticas de austeridade vem delegando, em ritmo acelerado a incumbência às famílias na provisão de recursos e cuidados necessários à satisfação das necessidades de seus membros, independente da desigualdade estrutural do país, expressa nos seus três eixos: classe, gênero e raça. Isso implica tanto na provisão de recursos como na exigência de uma excessiva dose de trabalho familiar. É um modelo de proteção social conservador, focado no mercado e na família.  O estado tem um papel residual, subsidiário e focalizado. A família é tratada como uma fonte natural de proteção e recursos; é responsabilizada pelos riscos advindos de um modelo econômico concentrador de riqueza; é assumida simbolicamente como capaz de restaurar o projeto de uma sociedade solidária”, destaca Cassia, uma das grandes pesquisadoras e estudiosas sobre o tema do familismo. Ela é uma das autoras do livro “Familismo, direitos e cidadania: Contradições da política social”.

Dentro desse cenário, o que prevalecem são as concepções estereotipadas de família e dos papeis familiares. As famílias passam a ficar sobrecarregadas na provisão de recursos e cuidados e corporificam a família nos programas sociais. O movimento passa a tomar a frente dos cuidados de proteção social que deveriam ser realizados pelo Estado. E, novamente, as mulheres se tornam as responsáveis por isso.

“Nesse momento há um movimento intenso por parte do governo federal, em tentar mais uma vez delegar às famílias as responsabilidades por gerir os riscos resultantes da crise econômica. A pandemia mostrou de forma contundente a importância e o papel da família nos cuidados, num modelo econômico neoliberal no qual o estado não atual como principal ator na proteção social. A família está atuando como amortecedora da crise”, reflete.

Cassia enaltece ainda que o Serviço Social avançou especialmente durante a década de 1980 com a incorporação de um método crítico para analisar a sociedade e as relações de dominação e exploração dessa sociedade que se apoiam em três pilares fundamentais (classe, gênero, raça/etnia) que se interligam. Ela explica o Serviço Social também está presente na questão do familismo e da centralidade da mulher.

“Não podemos esquecer que a categoria é majoritariamente de mulheres e esse fato está diretamente relacionado a divisão sexual do trabalho na sociedade capitalista. Também o público que demanda nossa intervenção é composto em sua grande maioria de mulheres, o que está relacionado novamente à divisão sexual do trabalho que coloca as mulheres como responsáveis pelos cuidados domésticos familiares, das crianças, idosos e doentes”, explica.

Para a professora, as (os) assistentes sociais possui um papel preponderante na forma como se olha para as questões apresentadas pelo público e como as ações são organizadas no cotidiano. “No caso das queixas de violência trazidas, por exemplo, temos que ter conhecimento para entender as causas dessa violência, as dificuldades em sair das situações de violência, a importância de ações junto às mulheres. É necessário estabelecer articulações com os serviços de proteção a violência contra as mulheres”, diz ela, lembrando que a criação de muitos serviços de atendimento e proteção às mulheres além de serviços de abortamento contaram com uma participação efetiva de assistentes sociais.