14 de março: Dia Marielle Franco de luta contra o genocídio da mulher negra

O dia 14 de março de 2018 ficou marcado na história do Brasil. Nesse dia, a vereadora do município do Rio de Janeiro, Marielle Franco foi covardemente assassinada no centro da cidade após ter sido baleada enquanto estava no carro com seu motorista e sua assessora. A morte gerou uma comoção mundial. Milhares de pessoas compareceram ao seu velório e por dias as homenagens se espalharam pelas cidades do Brasil e pelo mundo. Marielle passou a ser lembrada em muros, se tornou nome de rua em grandes cidades do mundo e virou um símbolo de luta e resistência contra o machismo, racismo e a homofobia. Por conta disso, o dia 14 de março se tornou o Dia Marielle Franco de Luta contra o genocídio da mulher negra, uma data de reflexão sobre a desigualdade, o preconceito e as inúmeras injustiças que assolam as mulheres negras no Brasil.

“Marielle é semente. Ela é um símbolo de resistência que lutou muito até se tornar a vereadora mais votada na história do Rio de Janeiro com 46 mil votos. Mulher preta, filha, mãe, feminista e lésbica, ela representou e continua representando as minorias e percebeu a urgência de fortalecer a luta das mulheres negras, fazendo ecoar as vozes historicamente silenciadas. Especialmente em relação à política de segurança pública nas favelas do Rio de Janeiro e em relação a denúncias de múltiplas violações de direitos humanos”, destaca Tatiana de Fatima Santos, assistente Social da Secretaria municipal de Projetos e Planejamento Urbano de Pontal do Paraná.

Tatiana Santos, assistente social de Pontal do Paraná

O caso de Marielle ganhou grande repercussão e, dessa maneira, todos os olhos ficaram voltados para a investigação sobre o assassinato. O assassinato revelou a existência de um complexo esquema de milicianos dedicados a esquemas criminosos e a serviço de poderosos no estado. Ainda que a polícia e o Ministério Público do Rio de Janeiro tenham chegado aos mandantes ainda estão em aberto as questões: Quem mandou matar Marielle Franco? E por quê? A morte de Marielle representou um marco porque ela conseguiu ocupar um lugar de representatividade na política (dominada por homens brancos) e teve seu direito covardemente retirado.

“Foi uma tentativa de calar a voz das mulheres negras, de calar a voz da periferia que fala sobre a racismo cotidiano e a verdade sobre o genocídio dos jovens negros. Mas nós existimos porque resistimos”, afirma Alexsandra Aparecida de Jesus Moreira, assistente social do Hospital Zona Norte em Londrina.

Alexsandra Moreira, assistente social em Londrina

“A execução da Marielle expôs a necropolítica do governo reacionário e fascista que estava em construção no país. Ela precisava ser exterminada pois foi eleita de forma consagradora e era porta-voz das mulheres, das periferias, das negras e dos LGBTI+.  Após sua morte, Marielle permanece como representante e uma potência, encarnando todos os discursos de resistência da esquerda. Sua morte foi real e simbólica, pois com ela tentaram matar as pautas que ela defendia. Com a morte da Marielle, cada uma das pessoas que ela representava foi ferida e ao mesmo tempo intimada para a luta e a resistência necessária, para que sua história não continuasse a se repetir”, ressalta Priscila dos Santos Brasil, assistente social servidora pública da Secretaria Estadual de Saúde.

Mesmo com toda a repercussão a morte de Marielle ainda esbarra na falta de resolução, um cenário, infelizmente, muito comum de injustiça que assola especialmente a população negra e pobre no nosso país. E, particularmente, a mulher negra é ainda mais afetada. Além do racismo, as mulheres negras têm que lidar com a dura realidade de cuidar de famílias inteiras sozinhas, trabalhar na informalidade (elas representam a maior parte das trabalhadoras domésticas do país), receber baixos salários e ainda enfrentar uma violência crescente.

“As mulheres negras estão estatisticamente na base da pirâmide quando se trata da desigualdade social e econômica e quando falamos da violência. Isso porque elas são chefes de família, mães solos, com pouca ou nenhuma escolaridade e ainda há como fatores determinantes as questões de gênero e raça que contribuem para que essa seja uma realidade ainda mais difícil de ser superada”, enaltece Tatiana.

Um levantamento do Portal G1 com números no primeiro semestre de 2020 apontou que 75% das mulheres assassinadas no Brasil são negras e representam 60% do total de feminicídios, além de pouco mais da metade das vítimas de lesão corporal em decorrência da violência doméstica. Além disso, segundo o IBGE a taxa de homicídios das mulheres negras subiu de 4,5 para 5,4 por cada 100 mil habitantes entre 2003 e 2013. Uma violência que conta com toda a repressão policial, a impunidade, falta de justiça e amparo às vítimas e um racismo muito presente.

“Nossa sociedade foi estruturada a partir da definição de lugares sociais para mulheres negras, onde o patriarcado as colocam enquanto extensão de suas posses e isso é uma realidade difícil de superar porque o racismo estrutural cria a invisibilidade a naturalização da violência e da desigualdade que acomete a mulher negra”, explica Alexsandra.

Priscila Brasil, assistente social da Secretaria Estadual de Saúde do Paraná

“A violência contra a mulher negra é estrutural dentro do capitalismo. O estereótipo construído ao longo da história “autoriza” as violações contra ela. São comuns os estereótipos da negra sensual ou da negra barraqueira, trazendo sempre a herança histórica que recai sobre elas. Embora as mulheres brancas também sofram violência de gênero, é oferecida a elas uma dimensão de humanidade que é negada às mulheres negras”, afirma Priscila.

As assistentes sociais são unânimes em afirmar que essa é uma realidade difícil de ser enfrentada, mas que o único caminho para isso é a luta contínua e a resistência com o apoio aos movimentos feministas e negros, além de oferecer oportunidades de protagonismo para as mulheres negras, como foi o caso de Marielle.

“É preciso dar oportunidade para o protagonismo das mulheres negras, estimular o enfrentamento à discriminação de gênero, incentivar ações antirracistas e desenvolver ações voltadas à melhoria das condições de vida dessas mulheres”, destaca Alexsandra.

“Para mudar essa realidade precisamos lutar e resistir junto a movimento negro, feminismo negro e outras frentes de resistência, levantando a bandeira da igualdade, defendendo políticas públicas e combatendo todas as formas de desigualdade e opressão. Temos que levantar e lutar”, explica Tatiana.

“Precisamos nos reconhecer como parte do problema. É necessária uma atitude antirracista por parte da população branca, denunciando o racismo estrutural reproduzido nos espaços de poder, na política, no sistema econômico, na mídia, na educação e nas práticas religiosas. Precisamos pautar a alternância de poder e o papel da mulher na política. Precisamos abrir os olhos e realmente enxergar ao nosso redor e questionar: quantas (os) negras (os) têm no meu local de trabalho? Quantas (os) negras (os) são meus colegas de faculdade? Estamos consumindo a arte produzida pela população negra? Só assim poderemos construir uma nova organização social realmente justa e igualitária”, finaliza Priscila.

Comissão de Ética e Direitos Humanos do CFESS:

“Quando olhamos as instituições do Poder Executivo, Legislativo e no Judiciário, vamos perceber que a maioria das pessoas ocupantes dos maiores cargos nessas instituições são os homens, e os homens brancos, heterossexuais e raramente advindos da periferia. Essa é uma questão que está relacionada ao machismo, que relega um determinado papel as mulheres, mas em especial, a uma herança histórica de uma sociedade marcada pela escravidão. A população preta é historicamente inviabilizada e silenciada.

O racismo está na formação social e histórica desse país. Se não olharmos para isso, vai ser muito difícil enfrentar o genocídio da população preta. Não existe uma história lá do período colonial e outra do período atual como um fato separado, como uma questão superada.

Se o Brasil não enfrentar seus problemas fundamentais, estruturais, o genocídio da população vai continuar. Como profissionais temos o dever de ler essa realidade de forma crítica e se posicionar cotidianamente. E como pessoas que vivem nesse mundo desigual e violento, contribuir com os movimentos organizados na luta anticapitalista, antipatriarcal e antirracista.

No dia da morte da Marielle Franco essa população entendeu imediatamente que essa foi a expressão desse racismo histórico e estrutural, que expulsa pretos e pretas da participação em processos decisórios, que cala sua voz insistentemente. Mas o que não esperavam é que Marielle se tornasse semente. Nas últimas eleições municipais nós vimos esse processo de organização e ocupação das Câmaras Municipais que é muito importante e que precisa continuar”.