“Na minha profissão, a coisa mais difícil que faço é ouvir uma criança, uma menina, relatar um estupro.”

Tatiane Monteiro, assistente social tesoureira da seccional de Londrina do CRESS-PR, dá um depoimento sobre o horror vivido pela criança de 10 anos, do Espírito Santo (ES). A menina foi estuprada pelo tio durante anos, engravidou, conseguiu autorização para o aborto legal e passou por mais uma violência, a condenação dos contrários ao aborto.

“Na minha profissão, a coisa mais difícil que faço é ouvir uma criança, uma menina, relatar um estupro. Isso não acontece de vez em quando. O estupro, o abuso, a violência contra os corpos das mulheres são cotidianos. Essa é a cultura que firma o patriarcado. A defesa dos candidatos “provida” nada tem a ver com a vida. Tem a ver com culpar a vítima, tem a ver com oportunismo e com usar o sofrimento alheio para autopromoção, tem a ver sempre com submeter o outro, sempre!

Entre os muitos horrores que vi e vejo na minha profissão, um deles retrata bem essa realidade de violência contra a mulher. Eu trabalhava na saúde. Hospital de alta complexidade. Referência regional. Atendi no PS um menino adolescente. Todos adolescentes que entravam eu acompanhava a internação. Chamei a família, que morava na zona rural, para verificar a existência de violações de direitos, isso faz parte do protocolo. Ouvi a mãe, a irmã e o pai. As duas eram extremamente tímidas, mal respondiam às perguntas. O pai falava por elas. A mãe nem olhava nos meus olhos, a menina, de 12 anos, no entanto, olhou e seus olhos marejaram, sem que ninguém percebesse, além de mim. Chamei a psicóloga e pedi atendimento multidisciplinar. Essa foi a decisão de uma história de vida. Uma prima do adolescente me procurou, em uma manhã chuvosa, e me relatou uma história de horror.  

Tatiane Monteiro

A adolescente com 12 anos, irmã do paciente, era abusada pelo pai desde os 6, 7 anos. A mãe passou uma série de violências para facilitar os abusos. Primeiro, era forçada a sistemáticos comas alcoólicos para apagar, depois passou a ser sufocada até desmaiar, e, por fim, era ameaçada de morte, dela e da filha, se não deitasse e dormisse. E assim, os abusos foram acontecendo, ano após ano. O irmão adoeceu gravemente, era um menino franzino e tão doído que nunca conversou com a equipe de enfermagem, nem comigo, nem com a psicóloga, nem com médico. Ele morreu. Uma morte que até hoje não sei o que carregou em testemunho. E somente seu adoecimento e sua morte permitiram que mãe e filha pudessem sair daquele inferno para irem ao hospital. A psicóloga e eu fizemos a denúncia no MP. E eu e a prima da criança, a tiramos da casa. A mãe não quis sair, talvez nem tivesse mais forças.

O estuprador foi preso. Recebi ameaças de morte por isso. Quase um ano depois, fui intimada para depor em audiência sobre o caso no Fórum. Quando cheguei, uma moça me deu um abraço apertado, eufórico. Só a reconheci pela voz, quando ela falou “obrigada”.

Era a adolescente abusada desde os 6, 7 anos. Ela era outra pessoa. Uma moça linda, cabelos e pele bem cuidados, em nada lembrava aquela menininha mirrada, maltrapilha, apavorada, que me pediu socorro com os olhos, tendo seu agressor ao lado. Ela era uma menina livre. Livre do medo e do pavor. Seu semblante era outro. Impacto da interrupção de uma dor causada por um monstro.

Ele continua preso, já tinha antecedentes. Sigo minha vida e, às vezes, penso que ele pode sair da cadeia e vir atrás de mim, mas o fato é que a menina está livre dele. Sua mãe está livre dele. Mas as duas nunca estarão livres das dores que ele provocou. Um monstro!

Com essa história, quero dizer que seremos tão doentes quanto o agressor, se não tivermos olhos para a vítima.

Não podemos aceitar que uma menina de 10 anos, estuprada desde os 6,7 anos carregue uma gestação fruto desse abuso. Isso seria tão criminoso quanto o próprio abuso!”