Grupo de Adesão para soropositivos do HC é retratado em reportagem especial

Nesta semana uma reportagem especial do jornalista José Carlos Fernandes na Gazeta do Povo retratou uma linda e eficiente prática realizada no Hospital de Clínicas do Paraná, o Grupo de Adesão do HC. É um grupo para que pessoas com HIV possam aprender a discutir, a ouvir, a se cuidar, a entender o próprio corpo, a trocar dicas sobre como controlar o enjoo e a ‘refutar teses estapafúrdias’ como a ‘Cura Gay’.

O projeto figura entre as melhores iniciativas da saúde pública de que se tem notícia e sua criação tem a participação direta de um assistente social, Silas Moreira.

Confira a reportagem:
(fonte:José Carlos Fernandes – gazeta do povo)

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Há pouco mais de uma semana, a conversa ferveu num dos auditórios do Hospital de Clínicas, em Curitiba. Partiu de um grupo de aproximados 20 soropositivos – indignados com a decisão do juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, que desautorizou quem sabe mais do que ele – o Conselho Federal de Psicologia – e liberou geral para que psicólogos cristãos desenvolvam terapias de reorientação sexual. Também conhecido como “cura gay”, me permitam, essa prosa é de araque. Além de um atentado à humanidade, tem a eficácia de uma compressa de pepino para sarar enxaqueca.

A quem interessar possa, os revoltosos não são em sua maioria homossexuais. Há entre eles donas de casa e os pais de família contaminados por seus parceiros e parceiras, assim como dependentes químicos, entre demais casuísmos. As idades variam de 18 a 80 anos. São de confissões tantas que até os deuses se embaralham. Além do HIV, quase todos têm em comum a dificuldade em pagar contas no final do mês. Como se dizia, é gente simples, que encontrou ombro amigo em outros que, como eles, enfrentam a rotina diária de “coquetéis molotov” goela abaixo, algo como 21 drogas diferentes desenvolvidas para equacionar as cargas de vírus. Os efeitos colaterais são de amargar e o preconceito, um Mar Vermelho. Sem uma mão amiga, beijam a lona. Por isso se reúnem – simples assim.

O grupo no qual se encontram atende pelo nome de “Grupo de Adesão do HC” e acaba de completar 17 anos. Por “adesão”, entenda-se a decisão de tomar medicamentos, mais complicada do que parar de fumar, de comer carne ou de acompanhar séries americanas. Além de um dos primeiros do Brasil, o projeto figura entre as melhores iniciativas da saúde pública de que se tem notícia. Até porque custa quase nada e rende um monte. Pouca gente sabe disso, o que faz da célebre confraria do HC uma ilustre desconhecida. Esquisito, mas é isso mesmo. A propósito, foi no Grupo de Adesão que esses participantes aprenderam a discutir, a ouvir, a se cuidar, a entender o próprio corpo, a trocar dicas sobre como controlar o enjoo e a refutar teses estapafúrdias propagadas por quem deveria saber a lição de casa. Mais do que a maioria, eles sentem na pele o peso do obscurantismo. Às falas.

No início dos anos 2000, em tudo que é congresso sobre HIV a ideia que mais ganhava entusiastas era a de que alguém deveria ajudar os contaminados não só a se entregar à farmacologia, como ser fiel a ela, na alegria e na tristeza. Razões, de sobra. Na pré-história dos tratamentos, alguns tomavam uma saraivada tão absurda de comprimidos que dá engulhos só de imaginar o baticum-tucurundum que aquilo causava nas entranhas. Eram frequentes narrativas sobre quem abandonou o tratamento e bau-bau. Antes a morte do que ter o organismo levando piparotes, sem dó, um atrás do outro.

Voluntários se apressaram em esclarecer que era preciso ter calma. Nenhuma ânsia de vômito ou diarreia duraria uma eternidade. Mostrava-se que uma vez iniciado, o tratamento não podia ser interrompido, sob risco de ir tudo para o brejo. E que não havia como manter segredo para toda a família sobre aquela montanha de cápsulas guardadas na gaveta do criado-mudo. De todas as tarefas, a mais ingrata era chamar os seus e… contar. É para eles tão difícil quanto mandar comprimidos goela abaixo, mas não há tratamento antiaids mais inútil do que habitar uma ilha.

À época, a ideia de criar um grupo capaz de segurar as pontas empolgou a enfermeira cearense Maria Alba de Oliveira Silva, 58 anos, e o assistente social Silas Moreira, 57 (foto), ambos servidores do Hospital de Clínicas – Alba, hoje, aposentada. Houve muitas iniciativas parecidas pelo país, mas, salvo engano, nenhuma teve vida tão longa e tamanha prosperidade como a reunida por essa dupla dinâmica: ela exuberante no conteúdo e na forma, ele silente e providente. Dão-se às mil.

A explicação para tamanho êxito é só uma – Silas & Alba não largam o osso. E olhe que experimentaram toda sorte de chutes na canela. Anos atrás, os soropositivos perderam direito ao transporte coletivo gratuito – para que chegassem às reuniões no HC, mas também ao médico e demais serviços públicos. Não poucos deixaram de comparecer, com tudo que isso implica. Some-se ao estrago a falta de incentivo institucional aos grupos de adesão e o assombroso anonimato da iniciativa. Exceto o préstimo de uma sala emprestada no HC, para os encontros da semana, o núcleo deve soar para muitos como uma peça de ficção.
Motivo? Mesmo com tantos avanços, a palavra Aids ainda provoca repulsa. À medida que a contaminação perdeu os holofotes – é flagrante o desinteresse da indústria farmacêutica por novas pesquisas –, mais invisível o projeto ficou. Exceção apenas dois anos atrás, quando o arcebispo de Curitiba, dom José Antônio Peruzzo, apareceu para uma visita. Um deus-nos-acuda. Consta nos autos que foi a única autoridade – em qualquer instância – a colocar o pé para dentro do auditório. Abraçou, fez rir, emocionou. Ninguém esquece – e olhe que o Grupo de Adesão é bom de festa. São quatro por ano, todas no melhor do espírito bachelardiano: os corpos buscam espaços de felicidade.

Contra tudo e contra todos, vale dizer que o grupo do HC não esmorece. Talvez porque Alba, Silas, os médicos parceiros – gente como as doutora Cléa Elisa Lopes Ribeiro, todos os demais, saibam que os aproximados 680 encontros realizados até agora ajudam a escrever uma espécie de summa sobre a vida de quem é soropositivo. O que é segredo de consultório, ali é palavra com asas. Impossível ficar indiferente à idosa soropositiva que enche de ternura o que poderia ser uma tarde triste. Ou aos debates acalorados sobre protocolos, embates jurídicos – a aposentadoria, por exemplo.

Sobretudo, conta a cada nova sessão o testemunho de quem carrega o HIV no enxoval. Os participantes trazem para os coordenadores a crueza de suas rotinas, mas também exemplos sobre até onde pode chegar o “espírito humano”. Tal virtude é pródiga entre os mais pobres e deserdados em geral. Ali está uma prova. A turma modesta do Grupo de Adesão mora longe e é bamba em descascar abacaxis. Resolvem problemas cuja magnitude levaria qualquer pequeno burguês aos divãs do analista, às caixas de remédio pros nervos e pra cabeça. Desemprego, falta de perspectiva, orçamento doméstico estrangulado, discriminação – não importa. Para o pessoal arrebanhado por Alba e Silas tudo se ajeita. Mediante pequenos acordos de convivência e tolerância, dão um lindo troco no infortúnio. O mundo desse povo é um puxadinho. Seus depoimentos bem podiam ser divulgados no final da novela das nove.

Uns exemplos. Impressiona ver o casal idoso – ele contaminado – que levou para casa um outro soropositivo, tão velho e tão duro quanto, encontrado à deriva. Em vez de dois, são três. Dividem o mesmo teto, no melhor do estilo “que-é-que-custa?”. Mais? A mulher trans não melindra senhorinhas perto dos 80 anos. São como amigas da Legião de Maria. Uma outra mulher do grupo, mais abonada, faz uma espécie de Uber gratuito – carrega em seu carro quem quer que precise, para cima e para baixo. “Eles dizem que a história se divide em antes e depois do diagnóstico. Por ironia, em alguns casos, para melhor”, diz Alba, sobre os participantes que saíram do casulo assim que receberam o que um dia foi comparado à sentença de morte. Que nada.