Luta Antimanicomial: Entrevista com Wanderli Machado, presidente do CRESS-PR, ao Sindypsi

O CRESS-PR, em consonância com o Conjunto CFESS-CRESS, tem se posicionado e fortalecido ações em defesa da luta pela reforma psiquiátrica e do movimento antimanicomial.

Para abordar este tema o Sindicato dos Psicólogos do Paraná – Sindypsi  entrevistou a presidente do CRESS-PR, Wanderli Machado, que desde os anos 1970 integra os movimentos da Luta Antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica. A entrevista foi realizada no dia 18 de maio, por ocasião do Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Confira:

Reforma Psiquiátrica, uma conquista ameaçada

Foto: Vinicius Torresan / Sindypsi

A sombra dos retrocessos ameaçam a política de saúde mental no Brasil. Há indícios de um retorno rápido da lógica dos manicômios, o que tende a fortalecer a Luta Antimanicomial. Para dar um passo à frente, é crucial revisitar o passado. Conversamos com a presidente do Conselho Regional de Serviço Social do Paraná (CRESS-PR), Wanderli Machado, participante ativa dos movimentos que efervesceram a luta por direitos nas décadas passadas.

Mais um 18 de maio chega. Dessa vez, o gosto é um pouco mais amargo. Com profundos retrocessos se aproximando da política de saúde mental, o Movimento da Luta Antimanicomial experimenta uma intensa rearticulação para resistir. Trabalhadores e usuários da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), conquista histórica do movimento, resistem à precarização do trabalho e seguem firmes contra os ataques aos princípios da Reforma Psiquiátrica. No longo caminho que se vê à frente, as vozes experientes têm mais potência pelo que viram, viveram e fizeram.

É o caso de Wanderli Machado. A assistente social de Curitiba, atual presidente do Conselho Regional de Serviço Social do Paraná (CRESS-PR), integrou os movimentos da Luta Antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica dos anos 1970 para cá. Em conversa com o Sindypsi PR, a militante relembra que a luta pelo Sistema Único de Saúde (SUS) teve o mesmo pontapé da luta pela redemocratização do país. “As conquistas da Reforma Sanitária se dão a partir de movimentos de trabalhadores que desejavam a humanização do tratamento e melhores condições de trabalho. Mas era impossível debater o SUS sem falar da redemocratização. Os manicômios foram espaços de dominação e segregação que tinham tudo a ver com o projeto de uma sociedade excludente, onde se esconde o que é diferente. Todos sabíamos que a construção de uma sociedade sem manicômios não se daria em um regime de exceção”, conta.

A grande transformação promovida pelo SUS foi o enfrentamento ao modelo biologicista de medicina, reconhecido pela centralidade do hospital, do medicamento e do médico. “A prevalência desse modelo era muito excludente porque somente trabalhadores formais tinham acesso à saúde. Além disso, essa organização facilita a mercantilização da saúde ”, relata Wanderli. O questionamento da falta de universalidade da saúde pública brasileira dá surgimento grandes movimentos populares pela saúde, entre eles o Sanitarista.

Estamos falando do início da década de 1980. Wanderli era educadora social, alfabetizadora do Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral) e adepta à ideologia freiriana. Nessa época, o Brasil assistiu ao surgimento de importantes forças, como o movimento estudantil, o movimento pela anistia, o movimento pela constituinte e o movimento pela redemocratização. “Toda essa efervescência política e popular se encontra com o desejo de uma nova constituição e a efetivação de um Estado de Direito que buscasse a justiça social e a universalidade. É nesse bojo que surge a luta antimanicomial”, conta.

Da idealização à realidade

Antes mesmo da aprovação da Lei 10.2016 de 2001, a famosa Lei da Reforma Psiquiátrica, os movimentos da saúde mental já gozavam de vitórias. O Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), criado em 1978, denunciou incansavelmente a mercantilização da loucura e a hegemonia da rede privada na assistência a pessoas em sofrimento mental. Esse trabalho abriu portas para que, em 1987, no II Congresso Nacional do MTSM, o lema principal fosse “Por uma sociedade sem manicômios”.

No ano de 1989, a cidade de Santos (SP) protagonizou o processo de fechamento de leitos em hospitais psiquiátricos e abertura de uma rede substitutiva com equipamentos territorializados. A partir de 1992, estados também aprovaram a descentralização do tratamento em saúde mental. Nesse período, as experiências positivas com os primeiros CAPS, Núcleos de Apoio Psicossocial (NAPS) e Hospiais-dia estimularam a criação de uma política nacional de saúde mental. “Foi a partir dessas experiências que o Ministério da Saúde começou a implantar serviços substitutivos. A Lei da Reforma Psiquiátrica vem para coroar um movimento que já existia”, lembra Wanderli.

A partir da aprovação da Lei em 2001, se intensifica a proteção de direitos das pessoas em sofrimento mental, a criação de linhas específicas de financiamento à saúde mental pelo Ministério da Saúde e a participação de trabalhadores e usuários na fiscalização e gestão. Cidadania, inclusão social e liberdade eram os princípios da Reforma Psiquiátrica, mas, para atingi-los, algumas reformulações teóricas eram imprescindíveis.

“Era necessário repensar a relação entre o profissional e o paciente. Para as categorias da saúde que seguem o modelo biologicista, e entre elas está grande parte dos médicos, o sujeito em tratamento é um objeto, uma doença. Imagina na psiquiatria, área em que o profissional tem poder sobre a mente e o corpo do paciente? Era necessário rever essa relação”, explica Wanderli.

Para Wanderli, a Reforma Psiquiátrica contribui muito ao mostrar que, para além do diagnóstico, existe uma vida pulsante. “Temos que entender que a doença não se instala de uma hora para outra. Dependendo da maneira como o sujeito vive, ele adoece. Ninguém nasce esquizofrênico. A gente pode ter heranças, mas depende muito da sua qualidade de vida”, enfatiza. Esse é o princípio norteador da teoria do Conceito Ampliado de Saúde, que inclui alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade e acesso a serviços públicos como condições necessárias para se garantir saúde. “Saúde tem condicionantes e determinantes. Temos que conhecer as determinações sociais do processo de adoecimento”, defende Wanderli.

É baseado neste conceito que a Reforma Psiquiátrica acelera a desospitalização das pessoas em sofrimento mental e cria serviços comunitários, territorializados e incentivadores do convívio social. “Em um tratamento excludente, as pessoas perdiam a dimensão da vida social. No atual modelo de tratamento, elas têm direitos, não são sequestradas. Todos temos limitações e potencialidade, e os serviços tratam as pessoas em suas possibilidades de inserção no mundo”, aponta Wanderli.

Resistência ao retrocesso

O SUS traz consigo a reorganização dos serviços de saúde. Por ser baseado no Conceito Ampliado de Saúde, sua gestão exige a preocupação com a maneira como as pessoas vivem. “Mas essa rede de serviço não interessa aos empresários da saúde”, critica Wanderli. “Qual é o custo de um hospital psiquiátrico? Quase nenhum. Não há tomógrafo, não há raio-X, não há tecnologias hospitalares. É um custo muito baixo e uma possibilidade de lucro muito grande porque, nos manicômios, as pessoas são internadas pagando uma fortuna. Além disso, é um grande estímulo à indústria farmacêutica”, aponta.

Para Wanderli, o que está em risco nessa onda de privatizações e desmonte do serviço público não é só a política de saúde mental. “A receita do Banco Mundial é a extinção do SUS da maneira como o conhecemos. Com certeza teremos um recuo no conceito ampliado de saúde”, lamenta, lembrando que as práticas manicomiais nem sempre estão restritas aos muros dos manicômios. “É o que vemos com as comunidades terapêuticas, por exemplo. São instituições super restritivas. Em resumo, são práticas manicomiais, mas com outra roupagem”, finaliza.

A saída seria a mobilização. “Mais do que nunca, é preciso denunciar as políticas que estão sendo implementadas e conversar com os trabalhadores e usuários sobre os retrocessos. Vamos apoiar as lutas e ir para a rua”.

Fonte: Sindypsi