CULTURA POLÍTICA E ASSISTÊNCIA SOCIAL: a superação da prática clientelista como desafio para a consolidação de direitos sociais e políticos

Autoria: Joziane Ferreira De Cirilo
Publicação: IV Congresso Paranaense de Assistentes Sociais

1) Introdução

Apesar dos avanços na última década, a consolidação da Assistência Social como política de direito no Brasil ainda é objeto de um processo desafiador de conquista e tema de estudos de teóricos e trabalhadores sociais. Isto pode ser explicado em parte pela nossa história política, marcada pela cultura do clientelismo.
Cultura política que tem sido reproduzida no cenário nacional e que, ao contrário do que muitos imaginam, ainda norteia a elaboração das políticas públicas, com significativa influência nas políticas sociais, mas que também está presente nos mais amplos e inesperados setores da sociedade brasileira.
Apesar de citar neste trabalho alguns atores sociais que contribuem para a manutenção da relação clientelista está longe de ser o objetivo deste estudo, pelo contrário, o caminho a ser percorrido está no reconhecimento da capacidade teórico-metodológica e técnico-operativa dos assistentes sociais em enfrentar e superar esta cultura, reconfigurando-se num marco histórico para a Assistência Social.
Para tanto, nos remetemos à práxis cotidiana, aos conceitos e fundamentação teórica e enfim a questão central deste estudo. Será que a Cultura política constitui-se num dos obstáculos fundamentais para a consolidação da Assistência Social como política de direito?

2) Cultura Política

Almond e Verba (1996), observam que a Cultura Política não explica tudo sobre política e que pessoas com valores e habilidades diferentes podem apresentar, em situações distintas, diversos comportamentos. Almond afirma que a cultura política não é imutável, pois: “novas experiências podem mudar as atitudes dos indivíduos” (Almond et al., 1996:43). Dahl, em Poliarquia defende esta posição observando que as crenças individuais são influenciadas por diversos fatores, como a intensidade com que uma pessoa se expõe a uma idéia ou crença, a importância destas idéias, a coesão com as crenças já existentes e; a coesão com a experiência individual e sua relação com o real.
José Álvaro Moisés afirma que os fenômenos dos valores políticos são tratados como um dado, uma variável independente de determinações externas. O autor procura mostrar que apesar dos fatores estruturais serem relevantes na natureza da ação política, eles constituem efetivamente apenas uma parte do fenômeno.
Afirma que:
“a dimensão político – cultural (…) e a intervenção consciente de elites e não elites no processo político – exerce um papel decisivo na explicação dos comportamentos políticos…” (Moisés, 1995:87).

Para Gohn (1999), a convivência permanente entre novos e antigos valores é que permite que a Cultura Política seja o reflexo de um processo de construção permanente e que os valores dos atores sociais recebam a influência dos acontecimentos políticos.
Conceituar cultura política é necessário a fim de buscar explicação para o comportamento político dos indivíduos, destacando a forma intrínseca e subjetiva com que os valores culturais influenciam nos fenômenos sociais.

3) Assistência Social

Historicamente, a assistência social tem sido vista como uma ação tradicionalmente paternalista e clientelista do poder público, associada às primeiras Damas, com um caráter de “benesse”, transformando o usuário na condição de “assistido”, “favorecido” e nunca como cidadão, usuário de um serviço a que tem direito. Da mesma forma confundia-se a assistência social com a caridade da igreja, com a ajuda aos pobres e necessitados. Assim, tradicionalmente a assistência social era reconhecida como assistencialista.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 a Assistência Social é marcada por uma série de modificações profundas. Inserida no campo das políticas públicas inova em aspectos essenciais, especialmente no que concerne a descentralização político-administrativa, alterando as normas e regras centralizadoras e distribuindo melhor as competências entre as esferas governamentais, União, Estado e Município. Com a descentralização aumenta o estímulo à maior participação da sociedade civil organizada e, consequentemente, o processo de controle social.
Regulamentada pela Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS em 1993, a assistência social transita num período histórico de reconhecimento dos direitos, da universalização, dos acessos e da responsabilidade estatal.
Nesta perspectiva, o SUAS – Sistema Único da Assistência Social tem como modelo de gestão a descentralização e a participação, constituindo-se na regulação e organização da Política Nacional da Assistência Social. Com foco prioritário na família e na territorialidade, reordena as ações socioassistenciais incidindo na reformulação dos serviços, programas e projetos sociais.


4) Clientelismo

O conceito de clientelismo, de um modo geral, “indica um tipo de relação entre atores políticos que envolve concessão de benefícios públicos, na forma de empregos, vantagens fiscais, isenções, em troca de apoio político, sobretudo na forma de voto”. (CARVALHO, José Murilo; 1998. p.134).
O clientelismo perpassa toda a história política do país. Segundo Abranches (1989), “o clientelismo persiste e se fortalece em algumas regiões do Brasil, embora mudando de forma, praticada por uma nova geração de políticos de fachada moderna”, revela a persistência dos valores clientelistas na gestão das políticas sociais e, de modo específico, na de Assistência Social.
Para Martins (1999), o clientelismo, como “uma relação de troca de favores políticos por benefícios econômicos, é, essencialmente, uma relação entre os poderosos e os ricos e não principalmente entre os políticos e os eleitores”.
De fato, acentua Martins, as práticas clientelistas da política brasileira se disseminam para amplos e inesperados setores da sociedade. O autor argumenta que muito antes de os pobres votarem, o Estado já estabelecia com os ricos, uma relação de troca de favores.
É nesse cenário que se fortalece a “cultura da dádiva”, (Sales, 1994) e se reduz a favor, direitos sociais e políticos.
A política clientelista moderna é mais competitiva que a antecessora. Sobrevive, substituindo os antigos laços de lealdade, pela oferta de benefícios materiais. Significa, nesse sentido, uma ação de troca entre sujeitos. Essa intermediação dá-se pela moeda política que é o favor, o que implica uma condição de débito a ser cobrado.

5) A relação entre Cultura Política, Clientelismo e Assistência Social

Será que a Cultura política constitui-se num dos obstáculos fundamentais para a consolidação da Assistência Social como política de direito?
A incidência do clientelismo na Assistência Social, pode ser caracterizada como decisiva, no sentido de imprimir a essa política, uma cultura que fragiliza a idéia do direito e fortalece a idéia da dádiva e do favor (Sales, 1994).
Há estudiosos que afirma ser “mito” a reprodução da relação de troca e de favor por parte da população, por outro lado há os que defendem que a população continua se relacionando com a política e com os políticos de acordo com as concepções tradicionais, que não separavam o político do protetor e provedor.
São atitudes que reforçam a “matriz do favor” (Yasbek, 1993:50) e a cultura do assistencial (Raichelis, 1998:281)
A cultura política está enraizada na estrutura da sociedade brasileira, influenciando as práticas sociais e está posto como desafio a superação do clientelismo na gestão pública (Jacobi, 2000), para tanto se faz necessário a presença de atores sociais ativos, no exercício pleno de sua cidadania (Danino, 1994; Telles, 1999; Kauchakje, 1997).
A cultura política está impregnada na sociedade brasileira, perpassando todas as esferas da vida social: família, Estado, relações de trabalho, instituições escolares, cultura. Nesse prisma, as relações sociais estão fundamentadas, prioritariamente, no clientelismo, apadrinhamento, desigualdade e violência (Dagnino, 1994).

O serviço social há muito foi retirado do registro assistencialista pelos seus estudiosos e militantes, que o colocaram, acertadamente, no terreno da política. Aliás, esse foi um movimento teórico-prático da maior importância: os que ainda são chamados de assistentes sociais constituem-se numa das categorias mais combativas e, por isso criativas, na política brasileira do último quartel de século. A categoria está em todos os conselhos de defesa e promoção de direitos sociais, numa incessante atividade. Deve-se dizer que sem os assistentes sociais a criação e a invenção de direitos no Brasil não teria conhecido os avanços que registra. (2003, p. 15)

A concretização de direitos não foge às determinações econômicas, políticas e culturais, contudo o Serviço Social tem desenvolvido práticas que aprofundam o sentido da assistência social, na afirmação de uma nova cultura no campo dos direitos:
·         O empoderamento dos usuários na forma de informações e conhecimento do SUAS nas reuniões de acolhida nos CRAS e grupos socioeduativos;
·         A co-participação dos usuários na metodologia de trabalho (plano de ação com a família);
·         A discussão e a disseminação do SUAS junto aos profissionais das demais políticas setoriais;
·         A discussão e a disseminação do SUAS junto às lideranças comunitárias;
·         A capacitação da rede em espaços territoriais, promovendo debates e discussões sobre a PNAS;
·         A avaliação do impacto territorial a partir das discussões da PNAS;
·         A realização de grupos de estudos das equipes técnica dos CRAS.

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